16/10/2015

Reconstrução cultural - Kurt Lewin, 1943

RECONSTRUÇÃO CULTURAL (1943)
A construção de um mundo de paz, que seja pelo menos merecedor da denominação de "melhor que antes", inclui muitos problemas: políticos, econômicos e culturais. Cada um deles está carregado de dificuldades. Todavia, para conseguir algum progresso, é preciso considerar e enfrentar todos juntos, como aspectos interdependentes de um campo dinâmico.
As inferências do aspecto cultural parecem ser particularmente obscuras. A cultura dos alemães, dos japoneses, dos ingleses ou dos chineses tem alguma coisa a ver com a probabilidade ou improbabilidade de eles entrarem na guerra como agressores ou com lutarem de determinada maneira ao se verem duramente pressionados? Tais diferenças culturais têm alguma importância para a cooperação intercultural?
Ao que parece, a discussão dessa questão tem sido retardada por sentimentos filosóficos e políticos. A diferença entre povos tem sido ou demasiadamente acentuada e considerada como característica racial inata, ou menosprezada e tratada como secundária, frequentemente por má interpretação da doutrina democrática de iguais direitos para todos os homens. Uma abordagem realista, científica, terá de considerar as diferenças entre as culturas modernas como fatos da mesma natureza que as diferenças entre culturas "primitivas". Em princípio, tal abordagem científica se recusará a considerar inalteráveis as características culturais. Ao contrário, perguntará de maneira empírica: quão facilmente e por que métodos se pode realizar certo grau de mudança cultural, e quão permanente promete ser uma mudança que tal?
Só uma "antropologia cultural experimental", que estudasse sistematicamente as mudanças culturais, em condições especialmente criadas, poderia dar respostas definidas a tais perguntas. Infelizmente, a Antropologia Cultural ainda se encontra em fase "descritiva"; está ocupada em descobrir métodos adequados e fidedignos de observação e descrição das culturas modernas. Houve apenas laivos de experimentação sobre como é possível modificar ativamente as culturas numa direção desejada. Não obstante, tentaremos fazer o melhor possível.
Depois da guerra, na maioria dos países, será necessária certa dose de reconstrução cultural; esses países terão de mudar de uma "cultura" de tempo de guerra para uma "cultura" de tempo de paz. A maior parte das nações terão de fazê-lo sem auxílio exterior. Tal mudança da cultura de tempo de guerra para cultura de tempo de paz deve ser mais fácil do que poderia parecer, em vista do ódio atual, principalmente se a paz trouxer uma organização política mundial decente. Depois da última guerra, consideráveis proporções da população da maioria dos países voltou rapidamente para um pacifismo radical. Semelhante experiência deve deixar-nos prevenidos para não confundir a violência de um sentimento cultural com sua profundidade e permanência. Nos Estados Unidos, o abatimento de após-guerra se converteu rapidamente em isolacionismo, e dessa forma preparou o terreno para a guerra atual. (Provavelmente, [nos Estados Unidos] o perigo de uma reação semelhante, depois desta guerra, é ainda maior do que o de um militarismo imperialista permanente). Mesmo na Alemanha, logo depois da última guerra, a proporção da população que se voltou para o pacifismo foi provavelmente maior que o grupo que imediatamente começou a organizar a vingança e que, como primeiro passo, inventou a Dolchstosslegende. (Dizia-se que o front interno apunhalara o exército pelas costas; mantinha-se, dessa forma, o prestígio do exército alemão).
Todavia, o fato de que, numa nação, sentimentos culturais superficiais, embora violentos, possam mudar rapidamente, não refuta os historiadores que alegam que nada pode mudar tão pouco quanto as características culturais mais profundas de um povo. São esses traços culturais mais profundos que temos de considerar ao pensar nos aspectos culturais da paz permanente. Na Alemanha, malgrado o sentimento pacifista que se seguiu à Primeira Guerra Mundial, e muito antes de Hitler, toda criança estava novamente a brincar de guerra com soldados de brinquedo. E logo, segundo uma velha tradição, os militaristas estavam outra vez em ascensão. Por outro lado, durante mais de uma década, Mussolini tentou incutir nos italianos aquelas características marciais que evidentemente lhes faltaram na Primeira Grande Guerra. Apesar de tratar-se de uma tentativa assaz completa, que atingia todos os níveis de idade até à primeira infância, parece não ter conseguido alterar essas características culturais. De maneira análoga, algumas peculiaridades do caráter russo ou inglês parecem mudar muito pouco. O fato de crianças levadas de um país para outro adotarem rápida e completamente as características do povo do novo país, demonstra que tais características permanentes são culturais e não raciais.
Uma ordem democrática mundial não exige, nem sequer favorece, uniformidade cultural do mundo todo. O equivalente de liberdade democrática para o indivíduo é pluralismo cultural para os grupos. Todavia, toda sociedade democrática tem de se prevenir contra a má utilização da liberdade individual pelo gangster ou pelo "intolerante" – no sentido político. Sem estabelecer, até certo ponto, o princípio de tolerância, de igualdade de direitos, em toda cultura, a cultura "intolerante" porá sempre em perigo uma organização democrática mundial. A intolerância pelas culturas intolerantes é, portanto, uma condição prévia de qualquer organização de paz permanente.
Para organizar a mudança para a democracia, cumpre realizar uma mudança de valores num vasto domínio. Tal mudança deveria incluir, por exemplo, mais ênfase nos valores humanos, em oposição a valores super-humanos, tais como o Estado, política, ciência. Deveria acentuar o que Bismark, o "Marechal de Ferro" alemão denominou, já em 1880, Civilcourage (coragem moral dos civis) e cuja falta deplorava no caráter alemão (em contraposição à coragem e obediência cega do soldado). Ressaltaria a importância de enfrentar as dificuldades, ao invés de queixar-se delas. Ressaltaria a educação para a independência, não para a obediência.
Em toda tentativa de influenciar padrões culturais, nunca se pode acentuar demais que o problema de mudar pessoas isoladas ou pequenos grupos desenraizados e transplantados para novo ambiente cultural é bastante diverso do problema de mudar a cultura de um grupo compacto que permaneça no solo pátrio. A técnica que parece se oferecer como meio natural para atingir um grupo tão compacto, com o propósito de mudar o ambiente cultural, é a "propaganda" em suas várias formas, tais como o rádio, o jornal, etc.
Todavia, ainda que obtivesse êxito essa propaganda de fora ou de dentro do país, não teria ela probabilidade de mudar mais que os "sentimentos verbais" de um povo. Quando o alemão fala de "democracia", quer dizer provavelmente liberdade individualista. Quando um norte-americano define democracia também ele, muito frequentemente, acentua a liberdade individual e esquece que a liderança tem tanta importância na democracia quanto na autocracia. Acontece porém que o norte-americano vive num país em que está relativamente muito desenvolvida a eficiência do processo de decisões de grupo, pelo menos em pequenos grupos, e em que a liderança democrática é integralmente aceita como um padrão cultural e ensinada na escola, de forma prática, às crianças. Não se pode esperar que pessoas que vivem num país sem essas tradições compreendam uma palavra como democracia de qualquer outra maneira que não sejam as dimensões conceptuais em que estão habituadas a pensar. Não se pode esperar que o membro de uma cultura diferente aceite um padrão cultural jamais experimentado, quanto até os que o experimentaram raras vezes são capazes de descrevê-lo adequadamente. Uma das tragédias da República Alemã foi o fato de as pessoas que estavam no poder logo depois da guerra e que tinham espírito democrático confundissem democracia com "ser apolítico" e com este slogan, permitissem que os velhos reacionários mantivessem seus cargos oficiais como "especialistas". Foi uma tragédia que não soubessem que a "intolerância para com o intolerante" é tão essencial para manter, e especificamente estabelecer, uma democracia quanto a "tolerância para com o tolerante"; sobretudo, foi uma tragédia que não soubessem que uma liderança forte e uma utilização positiva e eficiente do poder político pela maioria é um aspecto essencial da democracia. Em vez disso, a Alemanha congratulou-se por ter a "Constituição mais livre do mundo", porque, tecnicamente, até uma pequena minoria obtinha representação proporcional no parlamento. Na realidade, tal estrutura deu origem a dúzias de partidos políticos e à dominação permanente da maioria por um grupo minoritário de centro.
Um segundo obstáculo importante à mudança de culturas é o fato de que um padrão como a democracia não se limita a problemas políticos, mas está inter-relacionado com todos os aspectos da cultura. Como a mãe trata o filho de um, dois ou três anos de idade; como são dirigidos os negócios; que grupo tem status; como se reage às diferenças de status – todos esses hábitos constituem elementos essenciais do padrão cultural. Portanto, toda mudança importante tem de processar-se dentro de um ambiente extremamente interligado. Não se pode limitá-la a uma mudança de valores oficialmente reconhecidos; tem de ser uma mudança na vida real do grupo.
Embora seja verdade que a mudança de valores conduz finalmente a uma mudança de conduta social, é igualmente certo que as mudanças de padrões de ação e da vida real do grupo mudarão os valores culturais. Provavelmente, é mais profunda e permanente esta mudança indireta dos valores culturais, que as mudanças diretas de valores pela propaganda. Não há necessidade de assinalar até que ponto Hitler compreendeu esse fato. Existe alguma esperança de influenciar a vida grupal fascista, no rumo da democracia?
Embora escassa, a pesquisa científica neste campo parece justificar, pelo menos, algumas afirmações gerais:
  • É uma falácia supor que as pessoas, quando deixadas entregues a si mesmas, sigam um padrão democrático em sua vida de grupo. Tal suposição não seria válida sequer para as pessoas que vivem numa sociedade democrática. (O desenvolvimento de certos países, como os Estados Unidos, no rumo da democracia, foi um resultado de condições históricas e geográficas muito específicas). Na democracia, como em qualquer cultura, o indivíduo obtém o padrão cultural por via de algum tipo de "aprendizagem". Normalmente, essa aprendizagem ocorre pelo fato de o indivíduo viver dentro da cultura em questão.
  • Quanto à mudança de um padrão cultural para outro, os experimentos indicam que a autocracia pode ser "imposta a uma pessoa". Isto significa que o indivíduo poderia "aprender" autocracia adaptando-se a uma situação que lhe fosse imposta de fora. A democracia não pode ser imposta a uma pessoa; tem que ser aprendida por um processo de participação voluntária e responsável. Passar da autocracia para a democracia é um processo que leva mais tempo que a mudança na direção oposta.
  • A "aprendizagem" da democracia, no caso de uma mudança a partir de outro padrão, contém portanto uma espécie de paradoxo semelhante ao problema da liderança na democracia. O líder democrático não impõe, como o autocrático, seus objetivos ao grupo; na democracia, a determinação do programa político é feita pelo grupo como um todo. No entanto, o líder democrático deve "liderar". No caso de uma mudança para a democracia, torna-se ainda mais nítido este paradoxo da liderança democrática. Numa mudança experimental, por exemplo, da liberdade individualista (laissez faire) para a democracia, o líder democrático não pode dizer aos membros do grupo exatamente o que deveriam fazer, pois isso levaria à autocracia. Contudo, algumas manipulações da situação tiveram de ser feitas para conduzir o grupo na direção da democracia. Um problema igualmente difícil surgiu quando o grupo autocrático devia ser transformado em democrático. O relaxamento das regras freqüentemente conduziu, de início, a um período de anarquia agressiva. Para provocar mudanças no sentido da democracia, é preciso criar uma situação, durante certo período, na qual o líder tenha um controle suficiente para impedir as influências que não deseja e manipular até certo ponto a situação. O objetivo do líder democrático, nesse período de transição, terá de ser o mesmo que o de todo bom professor, isto é, tornar-se supérfluo, para ser substituído por líderes saídos do próprio grupo.
  • Os experimentos no treinamento de líderes democráticos, de contramestres numa fábrica, por exemplo, mostram nitidamente que não basta treinar em práticas democráticas os sublíderes que dirigem os pequenos grupos face a face. Se o poder imediatamente superior, tal como a administração de fábrica, não compreende e não aplica práticas democráticas, ou ocorre uma revolução ou a influência da liderança democrática nos ramos inferiores se esvairá rapidamente. Isto não é de surpreender, pois os padrões culturais são atmosferas sociais que não podem ser administradas gradualmente.
  • No que respeito à reconstrução dos países europeus, isto significa que é um engano acreditar que possamos continuar a ajudar os Habsburgos a organizarem uma legião austríaca, com a idéia de que "o que o governo que a França, a Alemanha ou os Estados balcânicos querem, será decidido depois da guerra, não por nós, mas pelo povo". Evidentemente, se permitirmos que se organizem forças antidemocráticas, o povo não terá oportunidade de tomar decisões em prol da democracia.
Nossa tarefa é criar aquele grau de democracia necessário a uma organização internacional do tipo que desejamos realizar, aquele mínimo que nos permita, num mundo reduzido, interdependente, desenvolver a democracia que desejamos em nossa pátria. Para isso, é preciso proporcionar um ambiente político que seja suficientemente poderoso e duradouro para proporcionar ao povo pelo menos uma oportunidade de "aprender democracia".
Para enfrentar realisticamente este problema, teremos de evitar um imperialismo norte-americano a policiar o mundo, bem como um isolacionismo norte-americano que fuja à responsabilidade exigida de todo membro de um grupo democrático de nações. Teremos de evitar a crença ingênua de que "deixado entregue a si mesmo", o povo escolherá a democracia. Temos de evitar traçar planos com base no "ódio ao inimigo", mas temos também de evitar traçar planos fundados em desejos e na cegueira perante a realidade. Devemos saber, por exemplo, que teremos de lidar, na Alemanha, com uma estrutura em que, mês após mês, dia após dia, nos territórios ocupados, de seis a sete mil mulheres e crianças indesejadas são exterminadas em casas de matança e em que milhares de pessoas devem ter-se habituado a realizar semelhante trabalho. Os jornais estadunidenses parecem abrandar essas verdades desagradáveis, provavelmente porque desejam impedir uma paz baseada no ódio. Na verdade, tal prática frustra seu objetivo porque, na política como na educação, uma ação, para alcançar êxito, tem de basear-se num conhecimento completo da realidade.
Considerando o aspecto técnico da mudança, pode-se afirmar:
  • Evidentemente é impossível mudar os padrões culturais de milhões de pessoas tratando-as individualmente. Felizmente, os métodos chamados em geral "trabalho de grupo" permitem atingir de imediato grupos inteiros de indivíduos e, ao mesmo tempo, parecem ser de fato mais eficientes que o tratamento individual, para provocar mudanças profundas.
  • Parece ser possível atingir, com relativa rapidez, grandes massas, adestrando líderes democráticos e líderes de líderes, de maneira a construir uma pirâmide.
  • Será essencial contar com uma organização que, em vez de criar ressentimento e hostilidade, estimule a cooperação. Se se conceber a tarefa de democratizar realisticamente, como um processo que tem de atingir em nível profundo a ação familiar e a vida cotidiana do grupo, parece quase impossível intentar essa mudança principalmente através das escolas. Centenas de milhares de professores norte-americanos teriam de ser enviados para o exterior. Esses norte-americanos, mesmo naturalizados e sem dúvida refugiados, provavelmente nada criariam além de ressentimentos, numa situação que tal.
Todavia, pelo menos na Alemanha, existe um precedente histórico de norte-americanos que entraram no país com o propósito de ajudar em larga escala, e que receberam apoio e aceitação entusiástica por parte dos alemães. Depois da Primeira Grande Guerra, a alimentação de crianças de toda a Alemanha, conhecida ali como "Quaekerspeisung" (alimentação Quaker), causou profunda impressão em toda aldeia alemã e é lembrada até hoje com gratidão por milhões de pais. Parece exeqüível e natural instituir trabalho de grupo para a alimentação da Europa, após a guerra atual, de maneira que o trabalho cooperativo em prol da reconstrução ofereça uma experiência real de vida democrática de grupo. Seria possível atingir um grande número de pessoas e variados níveis de idade neste e em outros trabalhos de reconstrução.
É particularmente importante que, dessa forma, seja atingido o adolescente. É este nível de idade que apóia Hitler de maneira a mais cega e sem escrúpulos. (Por exemplo, a Super-Gestapo denominada Waffen-SS, cuja função seria sufocar qualquer sublevação no exército, é constituída de jovens assim). Além disso, o adolescente está naquele nível de idade que determina qual o padrão cultural que vigorará na geração seguinte. O ataque frontal à tarefa de transformar exatamente esse nível de idade – cheio de entusiasmo e, sob muitos aspectos, habituado à cooperação – em grupo cooperativos para a reconstrução produtiva dentro de um espírito democrático radical, poderia ser uma das poucas oportunidade de suscitar uma mudança para a democracia que prometa ser duradoura

Kurt Lewin
Problemas de Dinâmica de Grupo
Cultrix, SP





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