16/10/2015

Algumas diferenças sociais e psicológicas entre os Estados Unidos e a Alemanha - Kurt Lewin, 1936.

ALGUMAS DIFERENÇAS SOCIAIS E PSICOLÓGICAS ENTRE OS ESTADOS UNIDOS E A ALEMANHA (1936).
A educação é em si um processo social que às vezes implica pequenos grupos como mãe e filho, e, às vezes, grupos maiores, como a sala de aula ou a comunidade de uma colônia de férias. A educação tende a desenvolver certos tipos de comportamento, certos tipos de atitudes nas crianças ou em outras pessoas com que se ocupa. O tipo de comportamento e a atitude que a educação procura desenvolver, e os meios que emprega, não são somente determinados por vida de filosofia abstrata ou métodos desenvolvidos cientificamente, mas constituem, essencialmente, resultados das características sociológicas do grupo em que ocorre tal educação. Ao refletir sobre a influência do grupo social no sistema educacional, pensa-se geralmente em ideais, princípios e atitudes comuns a esse grupo. Na verdade, ideais e princípios desempenham importante papel na educação. Todavia, é preciso distinguir os ideais e princípios reconhecimentos "oficialmente" das regras que, na realidade, dominam os fatos no referido grupo social. A educação depende do estado e do caráter reais do grupo social em que ocorre.
Os processos educacionais, mesmo numa pequena unidade educacional como a família, dependem muito do espírito do corpo social mais amplo em que as pessoas vivem. Toda mudança na estrutura política, econômica ou social deste grupo mais amplo, como a nação, tem uma profunda influência não só na organização da educação, como em todo o seu espírito e técnica.
Naturalmente, em cada nação, o sistema educacional varia muito nas diferentes famílias e escolas. No entanto, existe uma atmosfera cultural geral, que constitui o "cenário" de todas as situações específicas. Tanto em Sociologia como em Psicologia o estado e o fato, em qualquer região, dependem da situação total de que a região faz parte. Portanto, a atmosfera geral tem uma influência direta na educação dentro de toda unidade sociológica. A extensão dessa influência depende principalmente da medida em que a unidade educacional em apreço (a família ou a escola específica) se separa dinamicamente da região abrangente mais ampla.
Nas últimas décadas, temos tido exemplos surpreendentes de quanto a mudança na distribuição do poder político modifica o objetivo e a prática da educação. Os que tiveram oportunidade de observar com bastante atenção o comportamento dos professores (por exemplo, na Alemanha entre 1917 e 1933, principalmente no período entre 1931-1933), puderam compreender facilmente como até mesmo pequenas alterações na situação política geral influíam, quase de um dia para outro, não só nos ideais ensinados, como também nos métodos educacionais empregados (tais como o tipo e a freqüência do castigo, a quantidade de treinamento, e o grau de liberdade e independência na aprendizagem). Os períodos de transformação política mostram impressionantemente o quanto a educação, em quase todos os seus aspectos, depende da estrutura social do grupo. Segundo parece, é mais fácil para a sociedade mudar a educação do que a educação mudar a sociedade.

CONSIDERACOES METODOLOGICAS
Por mais evidente que seja tal influência da situação sociológica na educação, e por mais sensível que a educação se mostre às mínimas mudanças na sociedade, é contudo difícil determinar exatamente quais sejam essas mudanças e encontrar conceitos para exprimi-las adequadamente. A influência que a mudança duma situação social tem na educação não pode ser adequadamente caracterizada pela descrição de alterações em programas e organizações, porque esses fatos não determinam suficientemente os fatores dinâmicos da situação educacional, isto é, os fatores que constituem a influência da educação no comportamento, na personalidade, e nos ideais de uma criança em desenvolvimento. A intensidade da pressão a que a criança está submetida é geralmente mais importante que qualquer medida educacional específica ou qualquer ato educacional isolado.
Pode-se alegar que características gerais como "liberdade", "autoridade" e "atmosfera social" são imprecisas e sutis demais para serem apreendidas por via de conceitos realmente rigorosos. Todavia, é mister compreender que tais expressões gerais não só são empregadas correntemente na caracterização de uma educação específica como também constituem, na verdade, características dinâmicas da maior importância, em qualquer situação socio-psicológica. Até certo ponto, a "natureza humana" é a mesma em toda parte e certas características sociais são semelhantes em todos os Estados capitalistas, na chamada "cultura ocidental".

DIFERENÇAS OBSERVADAS
O ESPAÇO DE MOVIMENTO LIVRE.
Se a descrição de uma situação for abordada de uma perspectiva dinâmica (vale dizer, de uma perspectiva que permita, finalmente, uma predição), será mister compreender a situação como uma totalidade de fatos ou ações possíveis. Toda mudança de posição social da pessoa, como ser promovida de uma série para a seguinte, ou tornar-se amiga de um grupo de crianças, ou mudança nas posses de sua família, significa que determinadas coisas, pessoas ou atividades tornam-se ou deixam de estar disponíveis. É possível falar, então, de espaço de movimento livre e de seus limites. Por movimentos, temos de compreender não só os deslocamentos físicos, mas, acima de tudo, "locomoves" sociais e mentais. Esses três tipos de locomoção são um pouco diferentes, mas os três devem ser identificados como fatos reais, em Psicologia e Sociologia.
O espaço de movimento livre de uma pessoa ou de um grupo social pode ser representado como uma região topológica, rodeada de outras regiões que não são acessíveis. A acessibilidade das regiões é obstada sobretudo por dois fatores. Um é a falta de capacidade, por exemplo, falta de perícia ou inteligência. O outro é a proibição social ou qualquer espécie de interdição que funcione como uma "barreira" dinâmica entre a pessoa e seu objetivo. A criança pode ser capaz de colher uma maçã, mas a mãe pode ter-lho proibido.
Para a situação educacional, o âmbito de movimento livre é uma característica das mais fundamentais. Por exemplo, numa instituição, ele é geralmente mais restrito que numa família. Se os movimentos pedagógicos progressivos acentuaram, nos últimos vinte e cinco anos, a idéia de liberdade, tal fato significou principalmente duas coisas: o reconhecimento das necessidades e da vontade próprias da criança e a recusa de um número excessivo de restrições. Semelhantes tendências devem aumentar o espaço de movimento livre da criança.
Não é fácil comparar o espaço real de movimento livre da criança mediana, nos Estados Unidos e na Alemanha pré-nazista. Comparar, por exemplo, as instruções gerais aos professores não revela muita coisa, porque as mesmas palavras têm sentidos diferentes em diferentes países; é amiúde extraordinária a distância entre os ideais que o processo educacional pretende seguir e a prática pedagógica. Sintoma mais fidedigno parecem ser os processos técnicos empregados pelos professores, tais como a freqüência das intervenções, as condições em que intervêm, o fato de habitualmente falarem em voz alta ou baixa, etc.
Uma segunda dificuldade para a comparação reside no fato de ser possível encontrar, nos dois países, famílias e instituições que concedem muito pouca liberdade aos filhos enquanto crianças de outras famílias e instituições são bastante livres. Além disso, existem diferenças entre as instituições educacionais nas diferentes partes dos Estados Unidos e no interior da Alemanha, e diferenças entre as várias classes sociais. Portanto, ao comparar os dois países, é conveniente mencionar, tanto quanto possível, crianças de classes semelhantes e instituições de posição e função equivalentes em ambos. Como a minha experiência nos Estados Unidos abrange na maior parte pessoas de classe média, mencionarei principalmente este grupo. Apesar disso, podem-se encontrar diferenças semelhantes entre outras camadas sociais, nos dois países.
Para quem vem da Alemanha, impressiona o grau de liberdade e independência das crianças e dos adolescentes dos Estados Unidos. Em especial, é surpreendente a falta de submissão da criança pequena para com adultos, ou do aluno para com o professor. Os adultos, por sua vez, tratam a criança muito mais de igual para igual, ao passo que, na Alemanha, mandar parece ser um direito natural do adulto, e obedecer, o dever da criança. Nos Estados Unidos, não se considera como relação natural entre adulto e criança, a de um superior (Herr) para com o subordinado (Untergebener), mas a de dois indivíduos que, em princípio, têm os mesmos direitos. Os pais parecem tratar os filhos com maior respeito. Geralmente têm o cuidado de pedir de maneira delicada, quando solicitam à criança que lhes traga algum objeto. Fazem a criança sentir que lhes está fazendo um favor, numa situação em que os pais alemães muito provavelmente dariam ordens secas. É mais comum, nos Estados Unidos, ouvir os pais agradecerem à criança à criança depois de uma ação como essa. Os pais podem fazê-lo mesmo quando tenham sido obrigados a utilizar considerável pressão para fazer a criança obedecer, ao passo que a mesma situação, na Alemanha, levaria provavelmente a um "da próxima vez, é para fazer logo". Na Alemanha, o adulto tende a manter a criança em estado de submissão, enquanto o norte-americano deseja, o mais depressa possível, colocar a criança em pé de igualdade.
Muitas vezes, o norte-americano diz a uma criança: "se eu fosse você, faria isto ou aquilo", numa situação em que um alemão diria: "você tem de fazer isso imediatamente". Evidentemente, essa diferença pode ser apenas uma questão de diferenças no estilo de linguagem. Pois, de modo geral, o norte-americano tem mais tendência a utilizar linguagem polida. Mas tais diferenças de estilo são significativas. De qualquer maneira, parece haver uma diferença real no grau de respeito pelos direitos e pela vontade da criança, como outra pessoa. Nos Estados Unidos, quando se viaja com uma criança pequena, é preciso protegê-la menos que na Alemanha, dos estranhos que a querem afagar ou beijar.
Encontra-se a mesma diferença na relação básica entre a criança e o educador, nas escolas e nas escolas maternais. Ao chegar da Alemanha [aos Estados Unidos] a gente se dá conta da lentidão e relutância com que uma professora de escola maternal se acerca da briga de duas crianças. A princípio, esse procedimento pode parecer falta de interesse de parte da professora. Mas, na realidade, ensinou-me à professora de escola maternal a agir de tal maneira. Sempre que a professora deseja interferir nas atividades da criança, deve aproximar-se dela lenta e gradualmente. Se houver alguma possibilidade de resolver o problema que não essa, a professora deve evitar interferir. Na escola maternal progressiva alemã, no período pré-nazista, a idéia da independência da criança também era acentuada, principalmente nas escolas maternais Montessori. Todavia, na prática, é difícil exagerar o grau de diferença facilmente observável até nas mais representativas entre as escolas preparatórias alemãs, de professores de escola maternal. Existe outra diferença igualmente marcante no que toca a uma segunda regra para a professora de escola maternal norte-americana, a saber: qualquer que seja a reação da criança, ser afável e falar-lhe em voz suave. Na Alemanha, a interferência de um adulto não só é mais frequente como geralmente mais enfática e brusca. Muito mais amiúde ocorre com espírito de comando, a exigir obediência. Verifiquei que na Alemanha, sob o regime nazista, a principal escola preparatória de professores para escola maternal devia aconselhar seus alunos a não explicarem uma ordem, mesmo que a criança pudesse compreender a razão. Dessa forma, as crianças adquiririam o hábito de obedecer cega e incondicionalmente, não a partir da razão, mas da crença ou do amor. Tal princípio concorda com a norma básica do Estado totalitário, proclamada mais de uma vez, principalmente no primeiro ano do regime: comandar os debaixo, obedecer aos de cima. Sem dúvida, essa recomendação ao professor de escola maternal supera a que era dada na Alemanha pré-nazista. Todavia, pode-se considerar tal prática como expressão extrema de uma relação entre adulto e criança que, em comparação com os Estados Unidos, sempre foi notável na Alemanha.
A luta do Estado totalitário contra a razão e a discussão intelectual, consideradas como "liberalismo", é muito lógica, pois o raciocínio coloca em pé de igualdade a pessoa que o utiliza. Portanto, apresentar razões, na educação é um "processo democrático".
Na educação dos Estados Unidos, o respeito pelos direito da criança está muito ligado à tendência de ajudá-la, de todas as formas, a tornar-se praticamente independente o mais depressa possível. Cuida-se muito de desenvolver meios e técnicas que permitam à criança vestir-se sozinha, comer e servir-se a si própria e executar outras partes da rotina diária de maneira independente. Em todos os países, encontram-se tendências semelhantes na educação progressiva, mas a liberdade real de escolha e o grau de independência efetiva pretendidos pelo adulto, e atingidos pela criança, parecem ser consideravelmente maiores nos Estados Unidos do que em ambiente comparável, na Alemanha.
Todos estes fatos parecem indicar que é maior na educação dos Estados Unidos que na da Alemanha pré-nazista, o espaço de movimento livre da criança. Todavia, existem fatos que podem tornar duvidosa tal conclusão. A educação norte-americana pode reconhecer em maior grau o direito da criança, mas o educador estadunidense não pode certamente ser considerado mais transigente que o alemão. Às vezes, impressionou-me a rigidez com que as mesmas escolas maternais, seguidoras fiéis das regras mencionadas acima, impunham determinados processos. Apesar de sua maior independência, sob muitos aspectos, o universitário norte-americano e mesmo o estudante de pós-graduação está preso a mais regulamentos do tipo escolar que o estudante alemão. A diferença na situação educacional dos dois países parece ser, portanto, não apenas uma diferença na proporção de espaço livre de movimento, como também uma diferença estrutural.

GRAUS DE LIBERDADE E NITIDEZ DAS FRONTEIRAS
No espaço de vida de uma pessoa, é preciso distinguir não só as regiões em que tem toda a liberdade de ação e outras em que não tem nenhuma, como também regiões de tipo intermediário: determinada atividade pode não ser totalmente proibida, e apesar disso, a pessoa pode sentir-se limitada e impedida no interior dessa região. Os diferentes grupos sociais a que pertence uma criança, a atmosfera nas salas de aula de seus diferentes professores, as atividades sociais diferentes de que participa, são frequentemente regiões de diferentes graus de liberdade.
Encontram-se transições graduais e bruscas entre regiões vizinhas. O espaço de vida, no todo, apresenta diferentes graus de homogeneidade. Existem ambientes educacionais em que quase todas as regiões se caracterizam, digamos, por um grau médio de liberdade. Por exemplo: num colégio interno, uma criança pode não ser muito reprimida, mas pode sentir-se sempre submetida a regulamentos. Em outros casos, o espaço de vida pode conter regiões de muita liberdade, e outras de pouca. A escola, por exemplo, pode ser uma região de disciplina rígida e pouca liberdade, enquanto a atmosfera da vida familiar pode ser agradável e conceder muita liberdade. Contraste semelhante pode existir na vida familiar de uma criança, por causa de um pai tirânico e de uma mãe fraca. Evidentemente, o grau de homogeneidade do espaço de vida de uma criança é dinamicamente importante, tanto para o seu comportamento quanto para o seu desenvolvimento.
Além disso, é importante o fato de transições graduais ou bruscas entre regiões vizinhas predominarem no espaço de vida. O espaço de movimento livre de duas crianças pode ser análogo quanto à extensão e à estrutura; entretanto, para uma criança, as fronteiras entre as regiões permitidas e as proibidas podem estar nitidamente determinadas, quase inflexíveis, e rigorosamente imposto seu reconhecimento. Para a segunda criança, tais fronteiras podem apresentar uma variação relativamente grande de um dia para outro (embora, em média, sua posição possa ser a mesma que para a primeira criança) e não estar definidas com muita nitidez. Seu horário diário pode não ser rigoroso. Quando é hora de dormir, ela pode obter facilmente permissão para tocar um disco ou dois, e depois dizer um boa-noite prolongado, interpolado de várias brincadeiras, antes de ir finalmente para a cama. Variam muito a freqüência e o tipo de exceções concedidas a uma criança. A reação dos pais ao pedido de um filho pode ser um seco sim ou não, enquanto outro pode obter todos os graus de respostas intermediárias. Em outras palavras, varia muito a nitidez predominante das fronteiras entre regiões vizinhas.
A situação educacional dos Estados Unidos, em comparação com a da Alemanha parece caracterizar-se por regiões de graus muito diferentes de liberdade e por fronteiras muito nítidas entre elas. Numa escola maternal Froebel, da Alemanha, por exemplo, a criança é mais orientada de modo geral, e tem de obedecer mais a regras em seus brinquedos e em suas atividades ao ar livre, que numa escola maternal equivalente dos Estados Unidos. Por sua vez, a escola maternal norte-americana tende a acentuar mais a necessidade de regras rigorosas para a rotina diária, nas refeições, por exemplo. Em conjunto, parece que a atmosfera educacional nas instituições alemãs, bem como entre as famílias alemãs, é mais homogênea, sem regiões de tão alto grau de liberdade, e com limites definidos com menos rigor que as encontradas numa instituição ou família semelhante dos Estados Unidos. A Alemanha totalitária, naturalmente, tomou medidas decisivas para aumentar a homogeneidade na educação, bem como em todos os outros campos, criando assim uma situação abrangente, extremamente regulamentada.
Além de sua maior heterogeneidade, o espaço de vida da situação educacional norte-americana parece ter fronteiras mais rígidas entre as diferentes regiões. Já mencionei que a educação norte-americana considera importante criar na criança pequena hábitos de maior pontualidade na rotina diária. Isso implica uma fronteira rígida de um importante grupo de atividades diárias, no espaço de vida da criança. Uma estrutura de tempo semelhante é característica do estudante norte-americano. Na universidade, ele provavelmente tem um horário fixo, estabelecido com antecedência para um período muito mais longo e com maiores minúcias que o estudante alemão. Com antecedência de seis meses, ele pode planejar o número de horas semanais que dedicará à pesquisa. Estabelece ele, com mais freqüência que um estudante em posição social e científica semelhante na Alemanha, rigorosas limitações de tempo para o seu trabalho. Existe mais probabilidade de um estudante esquecer-se das limitações de tempo e mergulhar em seu trabalho na Alemanha que nos Estados Unidos (não é a maior pressão econômica sobre o estudante norte-americano que provoca tal situação). A prática comum de exames, pelo menos a cada semestre, desconhecida na universidade alemã, é em grande parte responsável, na universidade estadunidense, pelo secionamento do trabalho em regiões bem definidas.
Kurt Lewin
Problemas de Dinâmica de Grupo

Cultrix, SP

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