16/10/2015

A educação da criança judaica (Lewin, 1940)

A EDUCAÇÃO DA CRIANÇA JUDAICA (1940).
À medida que continua a diminuir o número de países livres aumenta sobremaneira para o povo judeu da Europa, da Palestina e da América, a importância das atitudes e das ações da próxima geração de judeus nos Estados Unidos. Em grande parte, as ações serão determinadas pelas atitudes que as crianças ora em desenvolvimento adquirirão. É, portanto, da maior importância, por parte de pais e professores judeus, uma compreensão realista dos problemas psicológicos e pedagógicos implícitos nisso. Tentaremos esclarecer estes problemas discutindo o ambiente social que a criança defronta. Só poderá ter esperanças de êxito uma educação que leve em conta tal ambiente.
Consideremos uma cidade de tamanho médio, no Centro-Oeste dos Estados Unidos, que tenha um pequeno grupo judeu com boas relações com os gentios. Os judeus, principalmente as pessoas de classe média, enquanto cuidam de seus problemas de caridade, cooperam totalmente nos empreendimentos econômicos, políticos e sociais da cidade. E pode até acontecer que alguns gentios contribuam para as obras de caridade judaicas.
De início, não haveria muitas ocasiões em que o ambiente não-judeu fizesse com que a criança judia se sentisse classificada como diferente das crianças gentias. Poderia passar pela escola maternal, pelo jardim de infância e ir até o quarto ano do grupo antes de ter a primeira experiência de ser chamada "judeu sujo", talvez por ocasião de uma briga de crianças.
Mas quando a criança se aproxima da idade em que os pais costumam considerar conducentes a casamento as amizades entre rapazes e moças, ela provavelmente não será convidada para festas pelas famílias gentias. Todavia, nem sempre a linha demarcatória está clara e nitidamente definida; muitas vezes, não se sabe ao certo se a restrição vem de a criança ser judia ou de qualquer outra razão. Pode ser que só ao tentar empregar-se encontre o jovem judeu pessoalmente restrições sérias.
Mas quando deseja entrar numa universidade, o rapaz ou a moça depara com uma classificação explícita. Não é segredo que na maioria das universidades importantes, uma quota não oficial, embora definida, limita o número de judeus, principalmente em escolas profissionais. Somente as fraternidades e irmandades judaicas estão abertas aos estudantes judeus. A classificação de judeu assume assim uma ênfase que muito amiúde ultrapassa consideravelmente os desejos do estudante.
Como reagem os estudantes judeus a esta situação? Um bom número deles conseguem "aguentar". Isto é, apresentam um comportamento bem ajustado e equilibrado, vivendo felizes e misturando-se com grupos judeus e não-judeus.
Existe contudo um grande número de estudantes judeus que mostram nítida falta de ajustamento. Para quem veio para os Estados Unidos procedente da Alemanha pré-nazista, é impressionante encontrar, às vezes em maior grau que lá, sinais característicos de desajustamento judaico, tais como tensão excessiva, falar alto, hiper-agressividade excessiva, empenho exagerado no trabalho.
Quais são, pois, os fatores que determinam se o indivíduo judeu apresentará ou não comportamento equilibrado, e o que pode fazer a educação para garantir um comportamento equilibrado?
É-se tentado a argumentar desta forma: o anti-semitismo é apenas uma das muitas dificuldades que a criança irá encontrar. Existem as dificuldades habituais da escola, dificuldades com seus pais e parentes, dificuldades com seus amigos. De fato, as ocasiões em que a criança terá probabilidade de deparar-se com o anti-semitismo, nas circunstancias descritas, são raras em comparação com a freqüência dos outros problemas. Se, pois, se consideram as dificuldades provocadas pelo anti-semitismo, não do ponto de vista dos judeus como um grupo, mas do ponto de vista do indivíduo isolado, não se poderia argumentar, mesmo com alguma demonstração de realismo, que não há necessidade de uma preparação específica da criança para enfrentar o anti-semitismo? Não bastaria fortalecer a capacidade geral da criança de haver-se com as dificuldades, principalmente sua capacidade de suportar vicissitudes sociais? Pelo menos na infância, - poder-se-ia argumentar, - parece não haver necessidade de qualquer preparação específica. Seria suficiente auxiliar a criança se e quando o problema real surgisse.
Há fatores que favorecem tal atitude por parte de pais judeus. É sempre desagradável sobrecarregar de problemas adicionais uma criança. Tornar a criança consciente de que é judia é provavelmente fazê-la sentir-se diferente de seus colegas de escola e companheiros de brinquedo não-judeus; suscita questões nela e pode levar a certo isolamento. Não será melhor então suavizar esse problema, enquanto for possível, até a criança ser bastante forte para "aguentar"? Não será essa a orientação pedagógica adequada, pelo menos nos casos em que o ambiente geral é suficientemente cordial, eximir as crianças de dificuldades anti-semitas?
Existe um segundo sentimento muitas vezes subjacentes a tal atitude dos pais. Era característico de um grande setor da população judaica na Alemanha pré-nazista. A projeção do problema judeu em ocasiões em que não havia necessidade absoluta disso era considerada perigosa para a posição judaica, pois iria possivelmente aumentar a separação entre judeus e não-judeus. Esperava-se que desacentuado o problema, por assim dizer, tanto quanto possível e em todas as situações possíveis, desapareceria gradualmente todo o problema judaico.
Na minha opinião, semelhante procedimento não ajuda a criança; ao contrário, é sobremaneira provável que provoque o resultado oposto. Trata-se de orientação pedagógica deficiente, que tende a colocar a criança em conflitos desnecessariamente graves; debilita sua capacidade de enfrentar as dificuldades; além disso, seu comportamento tenderá não a reduzir, mas a aumentar o anti-semitismo.
Para compreender isso claramente, teremos de discutir algo pormenorizadamente, do ponto de vista da criança em desenvolvimento, a natureza dos problemas psicológicos implicados.
O problema subjacente não é de maneira alguma um problema exclusivamente judaico. Tem de ser enfrentado pelos membros de qualquer grupo menos privilegiado. Em grau surpreendentemente alto, isso vale não só para os casos em que a falta de privilégios provém da discriminação social, como por exemplo, a que se exerce contra os negros nos Estados Unidos, mas também para aqueles em que surge por causa de defeitos físicos, tal como a surdez. No que respeita ao problema geral, a questão fundamental é: o que significa para um indivíduo o fato de pertencer a um grupo e como isso lhe afeta o comportamento em certas situações? Eu gostaria de esclarecer este ponto mencionando dois exemplos não-judaicos.
Num dos centros industriais do norte dos Estados Unidos, uma jovem negra que trabalha como criada doméstica é encorajada por sua professora branca a prestar concurso para o serviço público. Passa em primeiro lugar e é nomeada para trabalhar numa piscina pública. Fora proibida o acesso de negros à piscina; o diretor não quer tampouco empregar negros. Suas objeções são rejeitadas pelas autoridades do serviço público. Ele dá à moça negra um cargo inferior ao que ela merecia – põe-na no serviço de limpeza. A moça trabalha sem se queixar. Ao fim de algumas semanas, pensa em nadar na piscina ela própria. Imediatamente, um grupo de rapazes brancos a aborda, trata-a sem muita delicadeza e faz com que pare de nadar. O choque é tão grande que ela não só abandona o emprego como se recusa a tentar qualquer outro a que tenha direito no serviço público. A professora branca que me contou estes fatos disse-me que algum tempo depois encontrara a moça como ascensorista de uma grande loja. A professora tentara encorajá-la a pleitear novamente um cargo no funcionalismo, mas a moça parecia ter perdido toda fé e todo interesse em qualquer coisa que não fosse um lugar subalterno.
Um colapso tão extremado me fez suspeitar que, em criança essa moça negra tivera relações particularmente cordiais, e em pé de igualdade com crianças brancas. Uma pesquisa demonstrou que, de fato, ela crescera num grupo de crianças em que não havia discriminação entre brancos e negros.
O problema fundamental se revela com maior clareza ainda quando consideramos alguns casos que, à primeira vista, parecem ter muito pouca relação com problemas de minorias.
As histórias dos filhos adotivos frequentemente revelam desenvolvimentos bastante trágicos. Uma criança adotada muito nova cresce certa de que os pais adotivos são seus pais verdadeiros. Estes não lhe contam a verdade, pois desejam que ela os considere como seus verdadeiros pais. Não é infrequente, porém, que, por volta dos quinze ou dezessete anos, alguém lhe diga que é "apenas" filho adotivo. Frequentemente, isso provoca um abalo devastador que supera toda expectativa. Existem casos em que a criança, que era bom aluno na escola, perde essa alta classificação, deixa de levar a sério qualquer trabalho e transforma-se num vagabundo. Tais reações foram observadas em casos nos quais os pais adotivos continuam a dar à criança todas as provas de lealdade e amor irredutíveis, e em que nada mudou nas relações "objetivas" da família. Nesses casos, o resultado deplorável parece ser excessivamente desproporcional, pois nada mais mudou além do sentimento da criança de pertencer a pais adotivos.
Estas experiências induziram as autoridades encarregadas da colocação de crianças a aconselhar os pais adotivos a informá-las, em tenra idade, de sua situação real. Habitualmente, conta-se ao filho adotivo que a maioria das crianças é dada aos pais sem escolha. Ele, no entanto, foi escolhido pelos pais, em meio a uma porção de crianças e, portanto, deve ficar muito orgulhoso de ser um "filho escolhido". A consequência é, amiúde, a criança adotiva jactar-se de ser um "filho escolhido". Na adolescência, não tem dificuldade em enfrentar problemas que poderiam abalar os próprios fundamentos de sua existência, se só então soubesse da verdade.
Por que faz tanta diferença o filho adotivo saber de sua verdadeira situação aos três ou aos quinze anos?
A resposta – pelo menos uma resposta parcial – pode ser encontrada no seguinte fato. O grupo a que pertence um indivíduo é o chão em que se apóia, que lhe dá ou nega status social, que lhe dá ou nega segurança e auxílio. A firmeza ou fraqueza desse chão pode não ser conscientemente percebida, assim como nem sempre pensamos na firmeza do chão físico que pisamos. Todavia, dinamicamente, a firmeza e clareza de tal chão determinam o que o indivíduo deseja fazer, o que pode fazer e como o fará. Isto é verdade tanto para o chão social quanto para o físico.
O desenvolvimento da Psicologia experimental mostra, de maneira cada vez mais definida, que uma pessoa e o que se poderia chamar seu ambiente psicológico, não podem ser tratados como entidades distintas, mas constituem dinamicamente um só campo. Por exemplo, experimentos recentes mostraram que a inteligência de uma criança é muito modificada por tipos diferentes de ambiente. Existem muitas provas de que a estabilidade ou a instabilidade do ambiente contribui para a estabilidade ou instabilidade na criança em desenvolvimento. É muito conhecida a forma por que a disposição ou tensão da mãe influi na disposição ou tensão da criança.
O mesmo fato pode ser formulado de outra maneira, talvez mais técnica, dizendo-se que o desenvolvimento de uma criança numa pessoa diferenciada e estável é funcionalmente idêntico, ou pelo menos está relacionado muito de perto com o desenvolvimento de um ambiente psicológico diferenciado e estável para a criança. Aos olhos da criança, o mundo é a princípio indiferenciado e somente umas poucas áreas, tais como as experiências de alimentação, ganham forma e cor definidas. Gradualmente, as partes bem definidas de seu mundo se ampliam. Diz-se que "a criança aprende, adquire conhecimento, orienta-se". Dever-se-ia compreender, contudo, que esta aprendizagem significa algo mais: a própria construção do mundo em que a criança vive, do chão em que se apóia. Desde a primeira infância, os fatos sociais particularmente o sentimento de pertencer a determinados grupo, estão entre os elementos fundamentais desse mundo em expansão, e determinam o que o indivíduo considera certo ou errado, seus desejos e seus objetivos.
Pode-se compreender melhor agora o comportamento da nossa moça negra. Ela cresceu entre amigos negros e brancos, que se tratavam em pé de igualdade. Acreditava literalmente nos direitos iguais que, como aprendera na escola, eram garantidos pela constituição dos Estados Unidos a todo cidadão. Em suma, cresceu com a ideologia da igualdade entre negros e brancos, e sua perspectiva de futuro se baseava nessa ideologia. No momento em que tal crença se revelou uma ilusão, é compreensível que o mundo dessa moça tenha sido abalado até os seus alicerces.
O fato de a moça ter sido mais ou menos duramente tratada na piscina não tem muita importância. O que importa é o significado que teve esta ação para a sua mudança de sentimentos a respeito da inter-relação entre o grupo a que pertencia e os outros grupos. A moça descobriu que a estrutura social de seu mundo psicológico, construída lentamente através dos anos, fora subitamente destroçada. Ela ficou desorientada. Perdeu a base para as ações dirigidas, pois não mais sabia se uma ação em que até então acreditara constituir aproximação de um determinado objetivo tinha, de fato, essa direção. Além disso, sua fé na estabilidade do mundo fora severamente abalada, e sem tal estabilidade não tinha sentido fazer planos para o futuro.
Causas análogas estão subjacentes ao desespero do filho adotivo, a despeito do fato de que "objetivamente" nada mudou. Mudou sua própria posição com relação ao grupo e portanto ocorreu uma mudança de relação com a totalidade dos fatos existentes em seu mundo. Também ele viu desmoronar num instante um mundo construído durante anos; e sua fé na estabilidade do chão que pisava, e por conseguinte sua vontade de planejar para o futuro, perdeu-se.
É fácil extrair duas inferências para o problema judeu:
1) Ao julgar a importância de experiências relacionadas com nossa participação, ou nosso status, num grupo social, ou com quaisquer dos elementos do chão onde nos apoiamos, não se deve dar muita importância à freqüência ou ao caráter desagradável dessas experiências em função do grau de mudança provocada na estrutura do espaço de vida do indivíduo. Os pais judeus devem portanto procurar compreender que pouco importa quantas vezes a criança venha a ser objeto de preconceitos ou que os experimente de forma grosseira ou delicada. O importante é o alcance dessas experiências no determinar a posição do grupo judeu diante do grupo não-judeu, e também no determinar a esfera de situações em que o fato de pertencer ao grupo judeu é considerado um fator de importância.
2) É da maior importância que desde muito cedo se estabeleça um chão social estável. A mesma experiência de ser chamado "filho adotivo", que poderia perturbar o rapaz de quinze anos que desconhecesse a situação real, terá pouca ou nenhuma influência sobre a criança que foi devidamente informada de sua situação real na idade de três anos. É espantosamente grande a variedade de estruturas sociais a que uma criança em desenvolvimento se pode adaptar de maneira relativamente estável. Parece contudo ser extremamente difícil estabelecer um novo chão social estável depois de a pessoa ter entrado em colapso.
O grupo a que uma pessoa pertence serve não apenas como fonte de auxílio e proteção; implica também certas regulamentações e interdições. Em outras palavras, estreita o "espaço de movimento livre" da pessoa. Isto é muito importante na questão de adaptação do indivíduo ao grupo. O problema fundamental pode ser assim formulado: pode o indivíduo satisfazer suficientemente suas necessidades pessoais, sem interferir de forma indevida na vida e no objetivo do grupo?
Se o fato de pertencer a determinado grupo, ao invés de ajudar, cria obstáculos para o indivíduo atingir seus objetivos dominantes, surge um conflito entre ele e o grupo, até mesmo uma impaciência por deixar o grupo. O conhecido anti-semitismo de alguns judeus é uma expressão do desagrado do indivíduo judeu de pertencer ao grupo judaico. Na Alemanha isso se patenteava claramente na relação entre os judeus alemães e os orientais; nos Estados Unidos, na relação entre os judeus de origem espanhola e os de origem alemã ou, mais recentemente, entre os judeus de origem alemã e os de origem polonesa ou russa. Com bastante nitidez, verificam-se as mesmas tendências nas universidades, entre as fraternidades judaicas mais ricas e as mais pobres.
Parece também existir em todo grupo desprivilegiado uma tendência a aceitar os valores do grupo mais privilegiado numa dada sociedade. O membro do grupo desprivilegiado torna-se demasiadamente sensível por isso a tudo quanto, no seu próprio grupo, não se ajuste a tais valores, porque lhe faz sentir que pertence a um grupo cujos padrões são inferiores. Semelhante sentimento do indivíduo contra seu próprio grupo entra em conflito com a tendência natural em favor dele. O resultado é uma atitude tipicamente ambivalente, da parte dos membros do grupo desprivilegiado, em relação a ele.
O colapso do filho adotivo tem o seu paralelo no fato de que os colapsos mais graves provocados pelo anti-semitismo nazista ocorreram entre pessoas que tinham pai, mãe ou um dos avós judeus e que se consideravam bons católicos ou protestantes. Quando lhes foi repentinamente negado o direito de pertencer ao grupo do qual se sentiam parte durante toda a sua vida, esses infelizes experimentaram o colapso de seu chão social. Apenas em menor escala foram abalados os alicerces da vida judaica de todo o mundo quando a Alemanha, país considerado dos mais esclarecidos e melhor educados, recorreu à perseguição violenta aos judeus. Foi um golpe na ideologia favorita de muitos judeus de que o anti-semitismo devia ser considerado como um "preconceito", que "pessoas bem educadas não alimentam" e que se pode superar pelo "esclarecimento". Tornou-se evidente que o problema não pode ser tratado em termos individuais, particulares; tem de ser reconhecido como um problema social de grupos.
Para a ausência de ajustamento observável entre muitos judeus nos Estados Unidos, talvez seja mais importante outro fator, porém. Referimo-nos à posição de muitos judeus como ‘homens marginais’.
Recentemente, uma aluna de uma instituição co-educativa do Leste dos Estados Unidos, entusiasta, bonita, bem sucedida e ocupando, portanto, uma posição particularmente desejável, exprimiu tal sentimento da seguinte forma:
Talvez você tenha notado que sou mediadora dos debates. Acho que é um lugar muito adequado para mim, não porque eu represente a média entre eles, mas porque sou neutra. Não consegui decidi o que pensar ou por que pensar. E nisso sou típica do povo judeus.
Olhe para mim. Não estou aqui nem lá. Como judia, não valho muito. Venho ao ofício divino quando é mister; ouvi dizer que a minha é uma herança preciosa, mas não tenho a menor idéia do que seja. Posso citar uma série de poetas ingleses relativamente desimportantes – mas será que eu sei quem é o maior poeta judeu? Não. Minha educação tem sido exclusivamente cristã. As minhas virtudes são cristãs – pelo menos minhas concepções o são. Às vezes, descubro em mim algo de caracteristicamente judaico – e me espanto, quase alheada de mim. Sei que sou judia porque me disseram, porque tenho amigos judeus. Fora disso, pouco sentido tem para mim tal condição.
Veja, pois, que como judia não valho muito. Mas tampouco como americana sou melhor. Aqui na escola, movo-me dentro de um círculo encantado de judeus. O outro círculo, de não-judeus, esquece-me e eu a ele. De vez em quando, os círculos se tocam, às vezes mais, às vezes menos. Aproximo-me de alguém do outro grupo. Mas trata-se de uma amizade autoconsciente. Se é um rapaz, fico a perguntar-me o que será que el pensa de mim: ele se pergunta o que seus companheiros de fraternidade estarão dizendo. Se é uma moça, nós nos congratulamos mentalmente por termos ultrapassado os limites do preconceito racial. Quando lei a lista da Phi Beta Kappa, tomo o cuidado de assinalar quantos judeus existem entre os escolhidos. Estou sempre consciente de que sou judia, seja quando escondo o fato, seja quando procuro exibi-lo aos outros.
E o que sou? Segundo os judeus, sou americana. Segundo os americanos, judia. E é errado, completamente errado ser assim. E é só tirando as pessoas como eu da neutralidade – não tem importância para que lado, contanto que sejam tiradas – é que os judeus se livrarão do anti-semitismo. Precisamos tirar a venda de nossos próprios olhos.
Esta incerteza, bastante típica de muitos jovens judeus, dificilmente se deve ao fato de o judeu individual ser um cidadão dos Estados Unidos, além de judeu. é sociologicamente válida a famosa afirmação de Brandeis, que insistia no fato de a dupla lealdade não levar à ambiguidade. Isso é particularmente claro nos Estados Unidos, que incluem tantos grupos minoritários de caráter nacional mais ou menos acentuado, como os irlandeses, os poloneses, os alemães, os suecos. Além disso, cada indivíduo pertence a muitos grupos que se imbricam: à sua família, aos seus amigos, ao seu grupo profissional ou de negócios e assim por diante. Ele pode ser leal a todos eles sem se ver metido num estado constante de conflito e incerteza.
A causa da dificuldade não é pertencer a muitos grupos, e sim a incerteza de pertencer ou não.
Em praticamente todo grupo desprivilegiado se encontrará certo número de pessoas que – embora a maioria privilegiada não lhes aceita a participação – sentem que na realidade não fazem parte da minoria desprivilegiada. Frequentemente, são os mais privilegiados dentro do grupo desprivilegiado, ou aqueles cujo propósito manifesto ou secreto é atravessar a fronteira, que estão na posição dos que os sociólogos chamam de "homens marginais. São as pessoas que não pertencem nem a este nem àquele grupo, que vivem "entre" os grupos. Os estudiosos de Sociologia conhecem bem as dificuldades psicológicas que o homem marginal deve enfrentar – sua incerteza, sua instabilidade, e muitas vezes o ódio a si mesmo, devido ao estado de conflito mais ou menos permanente em que se encontra.
A freqüência de pessoas "marginais" num grupo desprivilegiado tende a aumentar à medida que se reduzem as diferenças entre os grupos privilegiado e desprivilegiado, com o consequente paradoxo de que a melhoria do grupo pode aumentar a incerteza e tensão do indivíduo.
Existe outro fator para aumentar a incerteza do judeu moderno. Ele amiúde não tem certeza de como e em que medida pertence ao grupo judeu. especialmente depois que a religião se tornou uma questão social de menor importância, é assaz difícil descrever positivamente o caráter do grupo judeu como um todo. Um grupo religioso com muitos ateus? Uma raça judaica com uma grande diversidade de características raciais entre seus membros? Uma nação sem um Estado ou um território para conter a maioria de seu povo? Um grupo unido por uma cultura e uma tradição mas tendo na verdade sob muitos aspectos, os valores e ideais diferentes das nações em que vive? Acho que existem poucas tarefas mais desnorteadoras que a de determinar positivamente o caráter do grupo judeu. Não é fácil compreender a razão por que tal grupo deva manter-se como unidade distinta, por que não renunciou inteiramente à sua vontade de viver, e por que as nações se recusaram a conceder aos judeus completa assimilação.
Não é de espantar que muitos judeus estejam incertos quanto ao que significa pertencer ao grupo judeu, e quanto a se, como indivíduos, deviam identificar-se com ele ou tentar desligar-se dele. Não é de admirar que frequentemente um judeu mude de atitude quanto ao que o grupo judeu significa para ele; e se perdeu a fé na religião, ou perdeu a crença no que costumava considerar os ideais especiais ou a missão dos judeus, tenderá a mostrar forte tendência de desligar-se totalmente do grupo.
A posição de fronteiriço entre os dois grupos ("neutra"), de estar em ambos os grupos, não estando de fato em nenhum, poderia ser natural para os meios-judeus biológicos. Devemos compreender, entretanto, que uma situação análoga e não menos difícil existe para os que poderiam ser chamados "meio-judeus sociais", que não se decidiram quanto a pertencer ao grupo judeu. Esses homens e mulheres marginais estão mais ou menos na mesma posição de um adolescente que não é mais criança, e que certamente não deseja mais ser uma criança, mas que sabe ao mesmo tempo que não é verdadeiramente aceito como adulto. Esta incerteza quanto ao chão em que se apóia e quanto a grupo a que pertence muitas vezes torna o adolescente barulhento, agitado, tímido e agressivo ao mesmo tempo, hipersensível e com tendência para os extremos, hipercrítico dos outros e de si mesmo.
O judeu marginal está condenado a viver pela vida afora em situação análoga. Sempre que surgem questões judaicas, ele as vê com olhos de judeu e de não-judeu. isto seria inteiramente certo se não tivesse dúvidas sobre a questão e se soubesse claramente quais eram seus valores pessoais, porque então pisaria terreno firme, capaz de servir de base para decisões razoáveis e justas. Geralmente, contudo, o judeu marginal não se sente suficientemente enraizado em nenhum desses grupos para que possa ter uma visão clara e confiante de suas concepções e relações pessoais em relação a qualquer dos lados. Vê-se pois compelido a permanecer num conflito interior, assaz vago e incerto, mas permanente. É o "eterno adolescente". Mostra a mesma infelicidade e falta de ajustamento.
A História demonstrou fartamente que o "bom comportamento" da parte dos judeus não constitui, de maneira alguma, uma garantia contra o anti-semitismo. De modo geral, as forças que atuam contra os judeus são devidas principalmente a circunstâncias internas da maioria não-judaica, como, por exemplo, situações que exigem um bode expiatório. Tais forças independem em grande parte da conduta judaica. Todavia, na medida em que o comportamento do grupo judaico seja importante, bem se poderia argumentar que ao fim e ao cabo as perturbações mais sérias resultam antes de suas realizações superiores que das inferiores. Na Alemanha, foram as realizações econômicas, sociais e culturais dos judeus que deram impulso ao anti-semitismo. Se houvesse qualquer sentido na tentativa de regulamentar as qualidades dos judeus, dever-se-ia prescrever o seguinte: para evitar o anti-semitismo, não inculque nos jovens judeus qualidades superiores; torne-os todos medíocres ou, ainda melhor, abaixo de medíocres!
Também não é totalmente feliz o efeito que o abafamento ou por assim dizer, a atribuição de sigilo ao problema judaico, tem sobre a proporção de anti-semitismo que o indivíduo judeu irá possivelmente encontrar. Poder-se-iam classificar os judeus em três grupos: os que sublinham em demasia a sua condição de judeus, os que se comportam normalmente, e os que tentam ocultar ou fazer passar desapercebida a sua condição judaica. O indivíduo do grupo central, que sabe em que situação e até que ponto deve acentuar a sua condição de judeu, é o que provavelmente se sai melhor. Quanto aos outros, há maior probabilidade de o gentio reagir sem hostilidade aos que sublinham em demasia sua condição de judeus que aos que a ocultam. Na medida em que o gentio não deseje uma assimilação total, é evidente que desconfiará facilmente do terceiro tipo, mas se sentirá bastante seguro em relação ao primeiro. Pois o comportamento ambíguo dos indivíduos do terceiro grupo parece tornar mais perigoso o dar-lhes os mesmos privilégios que a indivíduos cuja posição e ações prováveis são bem patentes: os últimos têm menos probabilidade de utilizar igual status na vida profissional, nos negócios ou na política, para tentar atravessar a fronteira num campo em que não seja desejada tal travessia.
Podemos pois concluir que, em face do problema judeu, a ação de pais judeus deve ser a mesma que nas questões de sexo ou de qualquer outro aspecto da educação, isto é, franca, aberta e realista. Estas são as considerações que devem influir:
  • O fato básico é que seu filho vai ser membro de um grupo minoritário desprivilegiado, e terá de enfrentar este fato.
  • A tentativa de manter, enquanto for possível, a criança distanciada do problema e de atenuar este irá muito provavelmente provocar maiores dificuldades de ajustamento mais tarde.
  • Isto também se aplica no caso de uma comunidade em que a criança tenha a felicidade de não encontrar dificuldades anti-semitas no início de sua vida; os pais devem compreender que algum dia o problema há de aparecer, e quanto mais cedo for enfrentado, melhor.
  • Esta formação precoce de um claro e positivo sentimento de participação no grupo judeu é uma das poucas coisas eficazes que os pais judeus podem fazer pela felicidade futura dos filhos. Dessa maneira, os pais podem reduzir a ambiguidade e a tensão inerentes à situação do grupo minoritário judeu e neutralizar assim várias formas de desajuste delas resultantes.
  • Entre as técnicas que os pais devem empregar, avulta o tratamento dos problemas judeus, não como questão individual e privada, mas como questão social. Por exemplo, exigir bom comportamento da criança ou estimular-lhe a ambição pessoal além do habitual, na maioria crista, só serve para colocar a criança em estado de tensão aguda, que torna mais difícil a adaptação. Desde o início, os pais devem acentuar o aspecto social da questão. Isto é mais realista e ajuda a impedir a incerteza pessoal e a auto-acusação ou a comiseração por si mesmo, que, de outra forma, são o resultado provável de experiências anti-semitas.
  • Uma melhor compreensão dos problemas sociológicos implicados tem particular valor para o adolescente judeu. pois pode ajudá-lo a resolver um dos mais intrigantes quebra-cabeças, mencionado anteriormente – qual o tipo de gruo constituído pelos judeus, se pessoalmente ele faz parte dele. Frequentemente, o adolescente se sentirá mais parecido com alguns amigos gentios que com judeus, e é possível que se incline a transformar este sentimento de semelhança ou dessemelhança em critério de medida de participação no grupo. É verdade que alguns sociólogos fizeram desta ou daquela espécie de semelhança entre os membros a marca definidora do grupo. Todavia, a semelhança entre pessoas permite tão somente sua classificação, sua inclusão no mesmo conceito abstrato, enquanto que pertencer ao mesmo grupo social significa uma correlação concreta, dinâmica, entre as pessoas. Um marido, uma esposa e um bebê se assemelham menos entre si, malgrado constituírem um forte grupo natural, que o bebê a outros bebês, ou o marido a outros homens, ou a esposa a outras mulheres. Grupos fortes e bem organizados, longe de serem completamente homogêneos, hão de conter uma porção de diferentes subgrupos e indivíduos. Não é a semelhança ou dessemelhança que decide se dois indivíduos pertencem ao mesmo grupo ou a grupos diferentes, e sim a interação social ou outros tipos de interdependência. Um grupo se define melhor como um todo dinâmico, baseado antes na interdependência que na semelhança.

Via de regra, o adolescente é perfeitamente capaz de compreender este fato. Ele o ajudará a compreender que pertencer ou não ao grupo judeu não é basicamente uma questão de semelhança ou dessemelhança, sequer uma questão de gostar ou não. Deve ele entender que independentemente de o grupo judeu ser um grupo racial, religioso, nacional ou cultural, o fato de ser classificado pela maioria como um grupo distinto é o que conta. Ele estará pronto para aceitar a variedade de opiniões e crenças ou outras diferenças dentro do grupo judeu como algo tão natural quanto em qualquer outro grupo. 

Compreenderá que o principal critério de participação é a interdependência de destino. Jovens judeus norte-americanos podem execrar o misticismo nacional judaico; podem não estar dispostos a sofrer por valores culturais ou religiosos que não compreendem inteiramente ou que talvez até aborreçam; cumpre-lhes, porém, ser objetivos o bastante para compreender claramente a interdependência de seu destino com o de outros judeus norte-americanos e, na verdade, com o dos judeus de todo o mundo.

O sentimento de pertencer baseado em semelhante compreensão sociológica realista de interdependência favoreceria muito, penso eu, um equilíbrio adequado na ação judaica. Impediria que o indivíduo acentuasse demais o problema judaico, mas, ao mesmo tempo, criaria uma disposição de aceitar boa parte de responsabilidade por seu próprio grupo. Deve ajudar a dissipar a névoa de incerteza e de sentimentos conflitantes que hoje paralisam a ação de tantos dentre nós.

Os pais não devem recear a chamada "dupla lealdade". É natural e necessário para todos pertencer a mais de um grupo imbricado. O verdadeiro perigo está em não ficar em "parte alguma" – em ser um "homem marginal", um "eterno adolescente".


Kurt Lewin.
Problemas de Dinâmica DE Grupo - Cultrix, SP

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