16/10/2015

A origem do conflito no casamento - Lewin

A ORIGEM DO CONFLITO NO CASAMENTO
Kurt Lewin
A. O GRUPO E O INDIVÍDUO
O grupo social como determinante fundamental do espaço de vida.
O casamento é uma situação de grupo e, como tal, apresenta as características gerais da vida grupal.
Portanto, os problemas de um cônjuge no casamento devem ser vistos como resultantes da relação entre um indivíduo e seu grupo.
1. O grupo e sua relação com outros grupos
Hoje se reconhece amplamente que um grupo é mais que a soma de seus membros ou, mais exatamente, é diferente dela. Tem estrutura própria, objetivos próprios e relações próprias com outros grupos. A essência de um grupo não é a semelhança ou a diferença entre seus membros, mas a sua interdependência Pode-se caracterizar um grupo como um "todo dinâmico"; isto significa que uma mudança no estado de qualquer subparte modifica o estado de todas as outras subpartes. O grau de interdependência das subpartes de
membros do grupo varia desde a "massa" amorfa a uma unidade compacta. Depende, entre outros fatores, do tamanho, organização e intimidade do grupo.
Um grupo pode fazer parte de um grupo mais extenso. O casal geralmente faz parte de uma família maior e a família maior pode fazer parte de uma comunidade ou de uma nação.
O indivíduo geralmente participa de muitos outros grupos, que mais ou menos se imbricam. Ele pode ser membro de um grupo profissional, de um partido político, de um clube, etc. O poder de qualquer desses grupos, isto é, o grau em que a participação de uma pessoa nos grupos influi no comportamento dela, pode ser diferente para os diferentes grupos a que pertence. Para uma determinada pessoa, os negócios podem ser mais importante que a política; para outra, o partido político pode ter poder maior. O poder dos diferentes grupos a que uma pessoa pertence varia com a situação de momento. Quando a pessoa está em casa, é geralmente maior o poder da família que quando ela está no escritório. O casamento tem, via de regra, um grande poder no mundo do indivíduo ou, como se pode dizer, em seu espaço de vida.
2. O que um grupo significa para um indivíduo.
O grupo é o solo em que a pessoa se sustenta. A rapidez e a determinação com que ela avança, sua disposição para lutar ou se submeter, e outras características importantes do seu comportamento dependem da firmeza do solo que pisa e de sua segurança geral. O grupo a que pertence a pessoa é um dos elementos mais importantes desse solo. Se a pessoa não está certa de sua participação nele e se não está bem estabelecida em seu grupo, seu espaço de vida apresentará as características de uma base instável.

O grupo como um meio.
Relaciona-se estreitamente com isso o fato de que, para o indivíduo, o grupo tem amiúde a posição de um meio. Desde a primeira infância, o indivíduo se habitua a usar uma relação grupal, por exemplo, sua relação com a mãe ou com a família, para diversos objetivos físicos e sociais. Mais tarde, o prestígio que a pessoa adquire por sua participação num determinado grupo, família, universidade, clube, etc, é um dos veículos importantes de suas realizações: a pessoa é tratada, pelos estranhos, como parte desse grupo.
A pessoa como parte de um grupo.
A mudança na situação de um indivíduo se deve, em grande parte, a uma
mudança na situação do grupo a que pertence. Um ataque a seu grupo, uma ascensão ou declínio dele, significa um ataque à pessoa, uma ascensão ou declínio de sua posição. Como membro de um grupo, ela, habitualmente, tem os seus ideais e objetivos do grupo.
O grupo como espaço de vida.
Finalmente, para o indivíduo, o grupo é parte do espaço de vida em que ele se
movimenta. Atingir ou conservar uma determinada posição ou status no interior desse grupo constitui um dos objetivos vitais do indivíduo. Sua posição no grupo, a quantidade de espaço de movimento livre dentro dele, e as características grupais semelhantes são importantes na determinação do espaço de vida do indivíduo.
Tornar-se-á claro, desde logo, o quanto o casamento significa no espaço de vida do indivíduo.
B. A ADPTAÇÃO DO INDIVÍDUO AO GRUPO
1. Necessidades grupais e liberdade individual.
Pertencer o indivíduo a determinado grupo, não quer dizer que, em todos os aspectos, ele deva estar de acordo com os objetivos, regulamentos, estilos de vida e pensamento do grupo. Até certo ponto, o indivíduo tem seus objetivos pessoais. Precisa de suficiente espaço de movimento livre no interior do grupo para atingir tais objetivos pessoais e satisfazer suas necessidades individuais. Do ponto de vista individual, o problema
de adaptação ao grupo e de vida bem sucedida nele pode ser formulado da seguinte maneira: como é possível à pessoa satisfazer suficientemente suas necessidades individuais, sem perder participação e status no grupo? Se é excessivamente pequeno o espaço de movimento livre do indivíduo dentro do grupo, ou, em outras palavras, se sua independência do grupo é insuficiente, a pessoa será infeliz: uma frustração intensa
demais a obrigará a deixar o grupo ou chegará até a destruir o grupo, se limitar com excessivo rigor o movimento livre de seus membros.
2. Métodos de adaptação de necessidades individuais e necessidades grupais.
A forma de levar a cabo o ajustamento do indivíduo ao grupo depende do caráter deste; da posição do indivíduo no interior do grupo; do caráter individual da pessoa (principalmente o grau de independência de que pode precisar para ser feliz).
Existem grandes diferenças nas maneiras possíveis de conciliar as necessidades individuais e de grupo. As restrições estabelecidas pelo grupo podem deixar ao indivíduo muita ou pouca liberdade. As restrições podem basear-se no consentimento democrático dos membros do grupo, ou ser impostas pela vontade de um regime autocrático.
AS PROPRIEDADES ESPECIAIS DO GRUPO CONJUGAL
O caráter do grupo conjugal no interior de uma dada cultura varia com a nacionalidade, a raça, o trabalho e a classe social. Além disso, há, naturalmente, variações muito grandes na estrutura de cada casamento. Contudo, algumas propriedades são típicas da maioria dos grupos conjugais dentro de nossa cultura. Ao considerar os conflitos no casamento, merecem atenção especial os seguintes pontos:
A. A pequenez do grupo.
O grupo conjugal contém dois membros adultos e talvez um ou mais filhos. Dado o pequeno número de membros do grupo, cada movimento de um dos membros atingirá profundamente, falando de forma relativa, os demais e o estado do grupo. Em outras palavras, a pequenez do grupo torna seus membros muito interdependentes.
B. O grupo toca regiões centrais da pessoa.
O casamento está intimamente ligado aos problemas vitais e à camada central da pessoa, aos seus valores, fantasias, status social e econômico. Diferentemente de outros grupos, o casamento não afeta apenas um ou outro aspecto da pessoa, mas toda a sua existência física e social.
C. Relação íntima entre os membros
Pode haver "distâncias sociais" diferentes entre as pessoas (a mera disposição de viver na mesma cidade é característica de distância social maior que a disposição de jantar em companhia de alguém). A disposição de casar é considerada sintoma de desejo da menor distância social possível. Na verdade, o casamento significa vontade de partilhar atividades e situações que, de outra maneira, seria mantidas estritamente privadas. A vida conjugal inclui proximidade física permanente, levada ao auge na relação sexual. Implica proximidade em situações de doença, e comparticipação em outras situações habitualmente ocultadas de terceiros.
Cada um dos pontos mencionados leva a um alto grau de interdependência. Seu efeito combinado provoca uma das unidades sociais mais estritamente integradas. De um lado, isso significa alto grau da chamada identificação com o grupo e disposição de continuar em companhia; de outro lado, demonstra grande sensibilidade às fraquezas do cônjuge ou às próprias.
O CONFLITO NO CASAMENTO
A. As condições gerais de conflito
Estudos experimentais sobre indivíduos e grupos mostram que um dos fatores mais importantes na frequência de conflito e na formação de uma explosão emocional é o nível geral de tensão em que vive a pessoa ou grupo. Se um evento específico levará ou não ao conflito é coisa que depende principalmente do nível de tensão ou da atmosfera social do grupo. Entre as causas de tensão, as seguintes podem ser enumeradas como importantes:
O grau de carência ou satisfação em que estejam as necessidades de uma pessoa.
Uma necessidade em estado de carência significa não só que uma região particular no íntimo da pessoa está sob tensão, mas também que a pessoa, como um todo, se encontra em elevado nível de tensão. Isto vale principalmente para as necessidades básicas, como sexo e segurança.
A quantidade de espaço de movimento livre da pessoa.
Um espaço por demais pequeno de movimento livre conduz geralmente a um estado de grande tensão. Isto foi demonstrado em experimentos com cólera e com atmosfera grupal democrática e autocrática. Numa atmosfera autocrática, a tensão é muito maior, originando
apatia ou agressão.
Barreira externa.
A tensão ou conflito conduzem frequentemente a uma tendência de abandonar a situação
desagradável. Se isso for possível, não se desenvolverá grande tensão. A falta de liberdade de subtrair-se à situação, em consequência de uma "barreira externa" ou de um liame interno, favorece muito o desenvolvimento de grande tensão e conflito.
Dentro da vida grupal, os conflitos dependem do grau em que os objetivos dos membros se contradizem uns aos outros, e da presteza com que se considere o ponto de vista da outra pessoa.
B. CONSIDERAÇÕES GERAIS SOBRE CONFLITOS NO CASAMENTO
Já mencionamos que a questão da adaptação de um indivíduo a um grupo pode ser formulada da seguinte maneira: como pode um indivíduo encontrar espaço suficiente de movimento livre para satisfazer suas necessidades pessoais dentro de um grupo, sem interferir com os interesses do grupo? Das características específicas do grupo conjugal infere-se que é particularmente difícil obter uma esfera privativa adequada dentro dele. O grupo é pequeno; é íntimo; a própria essência do casamento implica a comparticipação
dessas esferas particulares com o outro membro do grupo; as camadas centrais da pessoa e sua existência social estão envolvidas. Cada membro torna-se especificamente sensível a tudo o que não esteja de acordo com suas próprias necessidades.
C. A SITUAÇÃO DE NECESSIDADE
A variedade e a natureza contraditória das necessidades que o casamento precisa satisfazer. Espera-se, em geral, que no casamento e através dele sejam satisfeitas múltiplas necessidades. O marido pode esperar que sua futura mulher seja, ao mesmo tempo, namorada, companheira, dona de casa, mãe, administradora de suas rendas ou colaboradora no sustento da família, e representante da família na vida social da comunidade. A mulher pode esperar que o marido seja seu namorado, companheiro, arrimo da família, pai e zelador da casa. Estas diversas funções que cada cônjuge é solicitado a satisfazer
frequentemente exigem tipos opostos de ações e de traços de personalidade. Portanto, não se conciliam facilmente umas com as outras. No entanto, o malogro no preencher uma dessas funções pode deixar insatisfeitas importantes necessidades e provocar elevado e permanente nível de tensão na vida grupal.
Depende da personalidade dos cônjuges, e do contexto em que vive o grupo específico, quais dessas necessidades serão dominantes, quais serão totalmente satisfeitas, quais serão parcialmente satisfeitas e quais ficarão insatisfeitas. Evidentemente, existe uma ilimitada variedade de padrões correspondentes a diferentes graus de satisfação e importância das várias necessidades. A maneira pela qual um cônjuge reage a estas diferentes constelações de satisfação e frustração - emotivamente, com uma atitude prosaica, ou de luta, de aceitação, de realismo - aumenta ainda mais a variedade de antecedentes que cumpre considerar para ter-se uma compreensão dos conflitos dentro de um determinado casamento.
Existem ainda dois pontos inerentes à natureza das necessidades, que poderiam ser mencionados em relação aos conflitos no casamento. As necessidades criam tensão não só no estado de carência, como também no estado de hipersaciedade. Um excesso de ações de consumo leva à hipersaciedade, não só no domínio das necessidades físicas, tal como o sexo, mas também no das necessidades psicológicas, tais como jogar bridge, cozinhar, exercer atividades sociais, cuidar de crianças etc. A tensão resultante da hipersaciedade não é de maneira alguma menos intensa ou emotiva que uma tensão devida à carência.
Portanto, se no casamento a quantidade de ação consumptiva necessária para atingir um estado de satisfação é diferente para cada um dos cônjuges, nem sempre é possível encontrar uma solução fazendo das exigências consumptivas do membro mais carente a medida da vida grupal: isso pode muito bem significar hipersaciedade do cônjuge menos carente. No caso de algumas necessidades como a dança ou outras atividades sociais, o cônjuge menos satisfeito pode procurar satisfação fora do grupo. Todavia, muitas vezes,
particularmente no tocante a necessidades sexuais, isso não pode ser feito sem causar sérios danos à vida conjugal.
Mencionamos que existe a probabilidade de os conflitos serem mais sérios quando implicam necessidades centrais. Infelizmente, parece haver uma tendência de toda necessidade se tornar mais central quando em estado de carência ou hipersaciedade, e mais periférica, vale dizer, menos importante, quando em estado de satisfação. Por outras palavras, as necessidades insatisfeitas tendem a dominar a situação. Isto obviamente
aumenta as oportunidades de conflitos.
A necessidade sexual
No casamento, estas características gerais das necessidades são particularmente importantes na sua aplicação às necessidades sexuais. Frequentemente se afirma que as relações sexuais são bipolares, que significam, ao mesmo tempo, devoção e posse de outra pessoa. O desejo e a aversão sexuais estão intimamente ligados, e um pode rapidamente transformar-se na outra, com a mudança da carência sexual em saciedade ou hipersaciedade. Não se pode esperar que o ritmo sexual ou a forma específica de satisfação sexual sejam idênticas em ambas as pessoas. Além disso, frequentemente existe um aumento periódico de
nervosismo na mulher, ligado ao período menstrual.
Todos esses fatores podem levar a conflitos mais ou menos difíceis, e implicam a necessidade de adaptação mútua. Se neste domínio não se encontrar um equilíbrio que satisfaça os dois cônjuges, será difícil manter ileso o casamento.
Se as divergências entre os cônjuges não forem assim tão grandes e o casamento tiver um valor suficientemente positivo para os implicados, provavelmente acabará sendo encontrada alguma forma de equilíbrio. Fator dos mais importantes que afeta a felicidade e os conflitos no casamento, são a posição e o sentido que o casamento apresenta para o espaço de vida do marido e da esposa.
Segurança
Posso mencionar especificamente apenas uma outra necessidade (embora me pareça duvidoso que possamos classificá-la como "necessidade") a qual é a necessidade de segurança. Indicamos que uma das características gerais notáveis de um grupo social é o seu caráter de chão em que se apóia o indivíduo. Se este solo é instável, o indivíduo sente-se inseguro e torna-se tenso. As pessoas são geralmente muito sensíveis até aos ligeiros aumentos de instabilidade de sua base social.
O papel desempenhado pelo grupo conjugal como base social do indivíduo é, de fato, de primeira importância. O Grupo conjugal constitui um "lar social", em que a pessoa se sente aceita, abrigada e onde existe confiança em seu valor. Esta deve ser a razão porque as mulheres enumeram falta de fidelidade e de êxito econômico por parte do marido entre as causas mais frequentes de infelicidade no casamento. Na verdade, mesmo a infidelidade pode não reduzir a lucidez intelectual com que a pessoa encara sua própria situação, e influir, tanto quanto a desconfiança, na estabilidade de uma base social comum. No casamento, a desconfiança torna a pessoa insegura quanto à sua situação e quanto à direção efetivamente indicada pela
ação.

D. O ESPAÇO DE MOVIMENTO LIVRE
Um espaço suficiente de movimento livre, no interior de um grupo, é uma condição para a satisfação das necessidades individuais e para a adaptação ao grupo. Como já dissemos, um espaço insuficiente de movimento livre leva à tensão.
1. Íntima interdependência e espaço de movimento livre.
O grupo conjugal inclui relativamente poucas pessoas; compreende a participação na casa, na mesa e na cama; e atinge camadas muito profundas da pessoa. Cada um desses fatos significa que praticamente cada ação de um dos membros colide, até certo ponto, com a de outro. Naturalmente, isto significa um decisivo estreitamento do espaço individual de movimento livre.
2. Amor e espaço de movimento livre.
O amor tem uma tendência natural a abranger tudo, a envolver toda a vida da outra pessoa, seu passado, presente e futuro. Tende a dominar-lhes todas as atividades, negócios, relação com outras pessoas, etc.
É claro que a tendência de envolvimento total do amor ameaça diretamente a condição básica de ajustamento de uma pessoa a um grupo, isto é, um espaço suficiente de isolamento. Mesmo que o cônjuge penetre nessas regiões de atividades com uma atitude compreensiva, priva o outro de uma parte de sua liberdade.
Sob alguns aspectos, a situação do casamento torna ainda mais difíceis os problemas resultantes do amor.
Habitualmente, a participação num grupo significa a participação em apenas alguns tipos de situações e exige aceitação mútua apenas de características específicas da pessoa. Por exemplo, para a pessoa entrar numa sociedade comercial, geralmente bastam a honestidade e algumas aptidões. Até num círculo de amigos, geralmente é possível harmonizar a situação, de maneira a que cada qual possa gozar as características mutuamente apreciadas, e evitar situações que os membros não gostem de partilhar. Um exemplo típico de como um contexto que impede o isolamento se revela capaz de deteriorar a amizade é a história das duas famílias que se dão e se visitam muito até o momento em que resolvem passar as férias de verão na mesma casa, quando rompem imediatamente as relações. O casamento implica a necessidade de dizer "sim" tanto às qualidades agradáveis quanto às qualidades desagradáveis do cônjuge, bem como a disposição de viver permanentemente em contato íntimo.
O quanto seja necessário o isolamento é coisa que depende do caráter de cada indivíduo. Depende também do significado que tem o casamento nos espaços de vida de ambos os indivíduos.
E. O SIGNIFICADO DO CASAMENTO NO ESPAÇO DE VIDA DE UM INDIVÍDUO.
1. O casamento como amparo ou obstáculo
Comparemos a situação de um homem solteiro com a de um homem casado. O espaço de vida do solteiro é dominado por alguns objetivos principais. Ele procura superar as dificuldades que se encontram no caminho de seus objetivos.
Depois do casamento, muitos desses objetivos ainda serão os mesmos, e mais algumas barreiras terão de ser removidas se ele desejar atingir seus objetivos. Mas agora, como membro de uma família por cuja sobrevivência, por exemplo, é responsável, cumpre-lhe remover as barreiras, não mais como pessoa isolada, mas "levando o fardo de uma família". Isto pode envolver dificuldades maiores. Se estas se tornarem grandes demais, o próprio casamento poderá adquirir uma valência negativa; assumirá o caráter de um obstáculo no
caminho do indivíduo. Por outro lado, o casamento pode ser útil para superar barreiras. Isto não diz respeito apenas a ajuda financeira da mulher. Aplica-se a todos os tipos de realizações sociais. Poder-se-ia mencionar que hoje, economicamente, os filhos constituem carga maior e menor ajuda que outrora, embora, para o lavrador, os filhos, de um modo geral, ainda constituam bens de valor.
2. Vida doméstica e atividades externas
As diferenças de significado do casamento para os dois cônjuges podem-se exprimir nas diferentes respostas dadas à pergunta: "Quantas horas por dia devem ser dedicadas à vida doméstica?"
Frequentemente, o marido tende a consagrar mais tempo que a mulher à atividade fora do lar. O principal interesse da esposa pode estar no trabalho doméstico e nos filhos. As mulheres têm amiúde interesses mais profundos pela personalidade e pelo desenvolvimento da personalidade do que os homens, que tendem a preocupar-se mais com as chamadas "realizações objetivas".
O tempo real dedicado à vida familiar exprime um equilíbrio de forças resultante dos interesses do marido e da mulher. Se for muito grande a discrepância entre as necessidades dos cônjuges, é provável que surja um conflito mais ou menos permanente. Podem surgir discrepâncias análogas quanto ao tempo dedicado a atividades específicas, tais como recreação e vida social.
3. Harmonia e discrepância no significado do casamento
Os conflitos geralmente não se tornam sérios de fato enquanto não seja demasiado divergente o significado do casamento no espaço de vida dos dois cônjuges.
O significado que o casamento tem para um indivíduo varia bastante. Muitas vezes, o casamento significa algo mais importante e mais abrangente para a mulher que para o marido. Em nossa sociedade, o campo profissional é habitualmente mais importante para o marido que para a mulher e, portanto, para ele, reduz-se o peso relativo de todos os outros campos.
Tanto para o marido quanto para a mulher, o casamento pode significar alguma coisa de relativamente arbitrário, um meio para um fim, tal como influência social e poder. Ou pode ser um fim em si, incluindo a criação dos filhos, ou apenas vida em comum. A criação dos filhos, outrossim, pode significar coisas muito diferentes para diferentes indivíduos.
É comum que o casamento signifique coisas diferentes para cada um dos cônjuges. Isso, por si só, não leva necessariamente a conflito. Se a mulher estiver mais interessada na criação dos filhos, desejará passar mais tempo em casa. Essa necessidade não interfere com o interesse do marido e pode até conduzir a maior harmonia. Só quando os diferentes significados que o marido e mulher atribuem ao casamento não podem ser compreendidos simultaneamente é que uma discrepância de interesses provoca dificuldades.

F. GRUPOS IMBRICADOS
Na sociedade moderna, cada indivíduo faz parte de uma série de grupos. Geralmente, o marido e a mulher pertencem, em parte, a grupos diferentes. Esses grupos podem ter ideologias e objetivos antagônicos. Não é raro que o conflito no casamento provenha de lealdades a esses grupos imbricados, e a atmosfera geral de um casamento é em grande parte determinada pelo caráter de tais grupos.
Evidentemente, esta questão desempenha importante papel no caso de marido e mulher pertencerem a grupos raciais ou religiosos diferentes ou a classes sociais ou econômicas assaz divergentes. Grande parte do que discutimos sob a rubrica de necessidades e significado do casamento poderia ser tratado aqui, pois muitas das necessidades de uma pessoa estão diretamente ligadas à sua participação em certos grupos, tais como grupos de trabalho, partidos políticos, etc.
Mencionaremos especificamente apenas dois exemplos:
1. O casamento e a família mais ampla
Às vezes, os recém-casados precisam enfrentar dificuldades provenientes dos laços que unem os cônjuges às famílias de que provêm. A mãe da mulher pode considerar o genro como um simples acréscimo à sua família; ou cada uma das famílias implicadas por tentar atrair a nova unidade para o seu lado. Isso pode levar a conflito, especialmente se, em primeiro lugar, não for cordial a relação entre as famílias.
Reduz-se a possibilidade de conflito entre marido e mulher, se o poder de sua participação no grupo conjugal for maior que suas respectivas participações nos grupos mais velhos. Pois, neste caso, o grupo conjugal agirá como uma unidade diante do conflito. Contudo, se os laços com as famílias mais velhas ainda for forte, marido e mulher serão efetivamente dominados por sua participação em grupos diferentes e é possível que surja um conflito. Provavelmente, nisto repousa o conhecido conselho a um novo casal, de "não ficar muito
perto de suas famílias".
2. Ciúme
O ciúme é muito comum; pode ser encontrado já nas crianças pequenas; pode ser muito intenso, mesmo quando se opõe a toda razão. Em parte, o ciúme emocional baseia-se no sentimento de que a nossa "propriedade" nos é roubada Se for muito íntima a relação entre duas pessoas, é compreensível que este sentimento possa ser facilmente provocado, dada a grande quantidade de superposição, e a tendência do amor a abranger tudo.
A relação íntima de um cônjuge com uma terceira pessoa não só faz o segundo cônjuge "perder" o primeiro, como também sentir que alguma coisa de sua vida íntima foi revelada a um terceiro. Ao permitir ao companheiro(a) conhecer sua vida íntima, ele (ela) não pretendera com isso torná-la pública. A relação do cônjuge com a terceira pessoa é sentida como um rompimento da barreira entre a vida íntima e a pública.
É importante compreender por que cada um dos cônjuges pode experimentar de maneira diferente situações desta espécie. A amizade do marido com a terceira pessoa pode ter surgido de suas relações profissionais. Pessoalmente, pode ter-se tornado uma região muito importante para ele, embora ainda mantenha seu lugar na região profissional ou, pelo menos, seja claramente exterior à vida conjugal. Portanto, para o marido não existe interferência entre sua vida conjugal e sua relação com a terceira pessoa: nada é subtraído ao casamento e as duas lealdades a custo seriam conflitantes. Para a mulher, a mesma situação pode aparecer sob luz totalmente diversa. Em seu espaço de vida, toda a vida do marido está compreendida na relação conjugal e particularmente qualquer tipo de relação amistosa ou íntima afeta de modo profundo a região conjugal. Portanto, para a esposa, isto aparece como uma invasão clara da esfera conjugal.

G. O CASAMENTO COMO UM GRUPO EM ORGANIZAÇÃO
A sensibilidade do grupo aos atos de cada membro é especificamente grande no período inicial do casamento. Como um organismo jovem, um grupo jovem é mais flexível. À medida que marido e mulher vêm a conhecer-se, estabelece-se uma forma de haver-se com os problemas conjugais. Depois de algum tempo, pode-se tornar difícil alterar a forma estabelecida. Até certo ponto, a sociedade fornece um modelo tradicional que dá forma ao novo casamento. Todavia, a recente acentuação do caráter particular do casamento torna a
atmosfera do grupo ainda mais dependente do caráter e da responsabilidade dos cônjuges.
No casamento jovem não é clara a situação no que toca ao equilíbrio entre as necessidades de um e de outro cônjuge. Isto conduz a conflitos típicos, mas ao mesmo tempo permite maior flexibilidade para a sua solução.

SOLUÇÃO DE CONFLITOS
Depende totalmente da constelação do casamento em causa, e do significado que o conflito tem para ele, o grau e a maneira em que se poderia resolver um conflito. Entretanto, eu gostaria de indicar especificamente um fator: mencionamos que a frequência e a seriedade dos conflitos conjugais dependem principalmente da atmosfera geral do casamento. Ao que parece, o fator mais importante na solução dos conflitos também é a atmosfera.
Estar casado pressupõe renúncia a uma certa dose de liberdade. Isso pode fazer-se de duas maneiras: pode uma pessoa sacrificar sua própria liberdade por amor do casamento e resignar-se à frustração; ou tornar o casamento parte tão importante de sua vida, que os objetivos do cônjuge se tornem, em grande parte, os objetivos da referida pessoa. Está claro que, no último caso, não é muito certo falar de sacrifício: o significado de "limitação da própria liberdade" é agora muito diferente.
Não existe um poder místico nessa "identificação" com o outro cônjuge, e não constitui ela uma característica especial do amor e do casamento. A renúncia de certa dose de liberdade é condição de participação em qualquer grupo. Portanto, é importante para qualquer grupo saber em que base se estabelece o equilíbrio entre necessidades individuais e grupais. A submissão às regras do grupo pode ser mais ou menos imposta, ou provir de um intenso "sentimento grupal". Os experimentos demonstram que este último é muito mais característico de certas atmosferas democráticas que de certas atmosferas autocráticas. Demonstram ainda que o "sentimento grupal" favorece menos a tensão e o conflito. A disposição para levar em conta as opiniões e os objetivos do outro membro do grupo e discutir racionalmente problemas pessoais, leva a uma solução mais rápida dos conflitos. Sem dúvida, a mesma coisa vale para a atmosfera no casamento.


Eu tinha raiva do amigo:
Contei-lhe, a raiva acabou.
Tinha a raiva do inimigo:

Ocultei-lhe, ela aumentou.

Kurt Lewin
Problemas de Dinâmica de Grupo - Cultrix, SP.

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