16/10/2015

Conduta, conhecimento e aceitação de novos valores - Kurt Lewin e Paul Grabbe, 1945.

CONDUTA, CONHECIMENTO E ACEITAÇÃO DE NOVOS VALORES (1945).
(O material deste capítulo foi preparado conjuntamente pelo Dr. Lewin e pelo Sr. Paul Grabbe).
Qual é a natureza do processo reeducativo? O que faz com que "dê certo"? quais são as resistências que é provável encontrar? A necessidade de reeducação surge quando um indivíduo ou grupo está fora de passo em relação à sociedade em geral. Se o indivíduo se tornou alcoólatra, por exemplo, ou criminoso, o processo de reeducação tenta reconduzi-lo aos valores e à conduta que estão sintonizados com a sociedade em que vive.
A definição do objetivo da reeducação poderia deter-se aqui se a sociedade, como um todo, estivesse sempre de acordo com a realidade. Como tal não é o caso, temos de acrescentar: a reeducação também é necessária quando um indivíduo ou grupo perde contato com a realidade. Estamos tratando do que se poderia descrever como uma divergência em relação à norma ou à realidade dos fatos objetivos. Ao considerar o problema, a pergunta que nos cumpre fazer é esta: o que é preciso acontecer no indivíduo para que ele desista da divergência e se torne a orientar por uma norma, ou, conforme o caso, para um contato mais íntimo com a realidade?
A ORIGEM DE UMA DIVERGÊNCIA.
Os cientistas sociais concordam em que as diferenças de conduta, tal como existem hoje entre homens brancos, pretos ou amarelos, não são inatas; são adquiridas. As divergências da norma social também são adquiridas. Não foram compensadores os esforços para encontrar, nas "diferenças de personalidade básica", uma explicação para tais divergências. É provavelmente correto formular esta hipótese mais precisa:
São fundamentalmente semelhantes os processos que governam a obtenção do normal e do anormal.
Ao que parece, é fundamentalmente a mesma a natureza dos processos pelos quais o indivíduo se torna um criminoso, por exemplo, e a dos processos pelos quais o indivíduo não-divergente é levado a conduta considerada honesta. O que conta é o efeito, no indivíduo, das circunstancias de sua vida, a influência do grupo em que se desenvolveu. A anormalidade dessa influência do grupo em que se desenvolveu. A anormalidade dessa influência se acentua no caso do alcoólatra e do delinquente e, aparentemente, é válida para muitos outros tipos de divergências da norma social: a prostituta, por exemplo, ou mesmo o autocrata.
Sem dúvida, ocorre o mesmo com as divergências em que as crenças e a conduta se opõem à realidade. Os processos que as provocam – por exemplo, uma crença super-patriótica de que todos os estrangeiros são vermelhos – têm, fundamentalmente, a mesma natureza que aqueles pelos quais o indivíduo adquire uma perspectiva suficientemente realista da família e dos amigos, para viver em harmonia com a comunidade. Seu estereótipo errado de estrangeiros é uma forma de ilusão social. Para compreender-lhe a origem, antentemos para uma conclusão feita pelos psicólogos no campo da percepção de espaço: a de que são de natureza idêntica os processos responsáveis pela criação de imagens visuais "inadequadas" (ilusões) e os que provocam imagens visuais "adequadas" (realidade).
Experimentos relativos à memória e pressão de grupo sobre o indivíduo demonstram que , para este, o que existe como "realidade" é em grande parte determinado pelo que é aceito socialmente como realidade. Isto tem validade até no campo do fato físico: para o ilhéu dos Mares do Sul, o mundo pode ser plano; para o europeu, é redondo. Portanto, a "realidade" não é um absoluto. Difere com o grupo a que pertença o indivíduo.
Esta dependência do indivíduo em relação ao grupo, no que toca a uma determinação do que constitua ou não "realidade", se torna menos surpreendente se lembrarmos que a própria experiência do indivíduo é necessariamente limitada. Em outras palavras, aumenta a probabilidade de o seu julgamento estar certo, se o indivíduo tiver maior confiança na experiência do grupo, concorde ou não a experiência do grupo com a sua. Este é um motivo para a aceitação do juízo do grupo, mas existe ainda outro. Em qualquer campo de conduta e crenças, o grupo exerce forte pressão no que respeita à submissão de seus membros individuais. Estamos sujeitos a tal pressão em todas as áreas - política, religiosa, social - inclusive em nossas crenças do que seja verdadeiro ou falso, bom ou mau, certo ou errado, real ou irreal.
Nessas circunstâncias, não é difícil compreender a razão pela qual a aceitação geral de um fato ou de uma crença poderia constituir a própria causa que impede tal crença ou fato de jamais ser posto em dúvida.
A REEDUCAÇÃO COMO UMA MUDANÇA DE CULTURA.
Se os processos que levam a preconceitos e ilusões, e os que levam à percepção correta e a conceitos sociais realistas, são essencialmente os mesmos, então a reeducação deve ser um processo funcionalmente semelhante a uma mudança de cultura. Trata-se de um processo em que as mudanças de conhecimento e crenças, mudanças de valores e padrões, mudanças de ligações e necessidades emocionais e mudanças da conduta cotidiana não ocorrem aos poucos, e independentemente umas das outras, mas dentro do quadro da vida total do indivíduo no grupo.
Desse ponto de vista, até a reeducação de um carpinteiro que se vai tornar relojoeiro não se limita à questão de ensinar-lhe um grupo de novas técnicas de relojoaria. Antes de poder tornar-se relojoeiro, o carpinteiro, além da aprendizagem de um conjunto de novas habilidades, terá de adquirir um novo sistema de hábitos, padrões e valores – os padrões e valores que caracterizam o pensamento e o comportamento dos relojoeiros. Pelo menos, é o que precisará fazer para conseguir atuar com êxito como relojoeiro.
Nesse sentido, a reeducação equivale ao processo pelo qual o indivíduo, ao desenvolver-se na cultura em que se encontra, adquire o sistema de valores e o conjunto de fatos que mais tarde lhe irão governar o pensamento e a conduta. Portanto, parece que
O processo reeducativo tem de realizar uma tarefa que equivale essencialmente a uma mudança de cultura.
Agora podemos compreender com maior facilidade porque é acentuada a "informalidade da educação" como fator de particular importância na reeducação do delinquente; porque a atmosfera inclusiva, característica da vida num grupo como o dos Alcoólatras Anônimos, é considerada muito mais eficiente para auxiliar o viciado a deixar o álcool que a longa e severa rotina de treinamento específico de hábitos pela qual tem de passar o alcoólatra como paciente clínico. Unicamente com ancorar sua própria conduta em algo grande, substancial e supra-individual, como a cultura de um grupo, é que o indivíduo pode estabilizar suas novas crenças o suficiente para mantê-las imunes das flutuações diárias de estados de ânimo e de influências a que ele está sujeito como indivíduo.
Encarar a reeducação como tarefa de aculturação constitui, a nosso ver, um vislumbre básico e valioso. Todavia, não passa de um esquema. Para proporcionar uma reeducação eficiente, precisamos de uma nova compreensão da dinâmica do processo, da constelação específica de forças com que é preciso lidar sob diferentes condições.
CONTRADIÇÕES INTERNAS NA REEDUCAÇÃO.
O processo reeducativo afeta o indivíduo de três maneiras. Muda-lhe a estrutura cognitiva, - a maneira de ver o mundo físico e o social abrangendo-lhe todos os fatos, conceitos, crenças e expectativas. Modifica suas valências e valores, e estes compreendem tanto suas atrações e aversões a grupos e a padrões grupais como seus sentimentos em relação a diferenças de status e suas reações às fontes de aprovação e desaprovação. E afeta a ação motora, que inclui o grau de controle do indivíduo sobre seus movimentos físicos e sociais. Se essas três influências (e os processos que as provocam) fossem regidas pelas mesmas leis, a tarefa prática da reeducação seria muito mais simples, Infelizmente não são e, portanto, o reeducador enfrenta certas contradições. Por exemplo, o tratamento relacionado com o treinamento de uma criança que chupa o dedo; esta aprende certos movimentos circulares da mão cuja finalidade é tornar a criança consciente de que chupa o dedo e dar-lhe, com isso, maior controle dos movimentos; contudo, isso pode afastá-la de outras crianças e minar-lhe a segurança emocional, cuja posse é uma condição prévia para o êxito da reeducação.
Um dos problemas fundamentais da reeducação é ver como podem evitar-se tais contradições interiores. Provavelmente, são essenciais uma sequência correta de etapas, uma divisão correta de tempo e uma combinação correta de tratamentos individual e de grupo. Todavia, é da maior importância que o reeducador tenha inteira compreensão da maneira pela qual esses componentes psicológicos – a estrutura cognitiva, as valências e valores, e a ação motora - são afetados por qualquer etapa específica na reeducação.
A discussão que se segue abrange apenas dois dos principais problemas aqui envolvidos, um relativo à mudança de cognição, o outro à aceitação de novos valores.
MUDANÇA DA ESTRUTURA COGNITIVA
As dificuldades encontradas nos esforços para atenuar os preconceitos ou mudar, de alguma outra maneira, a visão social do indivíduo, levou à compreensão de que a reeducação não pode ser apenas um processo racional. Sabemos que preleções ou outros métodos abstratos semelhantes de transmissão de conhecimento têm pouco valor no que tange a mudar-lhe os pontos de vista e a conduta. Portanto, poderíamos ser levados a pensar que o que falta a tais métodos é a experiência direta. A triste verdade é que mesmo a experiência direta não produzirá necessariamente o resultado desejado. Para compreender as razoes disso, cumpre-nos examinar algumas premissas que têm relação direta com o problema.
Mesmo ampla experiência direta não cria automaticamente conceitos corretos (conhecimento)
Durante milhares de anos, a experiência diária do homem com objetivos que caem não bastou para levá-lo a corrigir a teoria da gravidade. Foi necessário uma sequência de experiências assaz fora do comum, feitas pelo homem, denominadas experimentos, os quais nasceram da busca sistemática da verdade, para provocar uma mudança, de conceitos menos adequados para outros mais adequados. Parece, portanto, injustificável supor que a experiência direta no mundo social levaria automaticamente à formação de conceitos corretos ou à criação de estereótipos adequados.
A ação social não é menos dirigida pela percepção que a ação física
Em toda situação, não podemos deixar de agir de acordo com o campo que percebemos; e nossa percepção se estende a dois aspectos diferentes desse campo. Um tem a ver com fatos, outro com valores.
Quando agarramos um objeto, o movimento de nossa mão é dirigido pela posição em que o percebemos na vizinhança igualmente percebida. Da mesma forma, nossas ações sociais são orientadas pela posição em que nos percebemos a nós e aos outros. A tarefa básica da reeducação, portanto, pode ser considerada a de alterar a percepção social do indivíduo. Unicamente por meio dessa mudança da percepção social é que é possível realizar mudança da ação social do indivíduo.
Suponhamos que de alguma forma um conhecimento mais adequado substituiu a informação inadequada (conhecimento). Bastará isto para mudar nossa percepção? Ao responder, aceitemos de novo uma indicação do campo da percepção física e perguntemos: Como é possível corrigir uma falsa percepção física, por exemplo, as ilusões visuais?
Via de regra, não basta o domínio do conhecimento correto para corrigir a percepção errada.
Nossa compreensão das condições que determinam a correção ou incorreção da percepção é ainda muito limitada. Sabe-se que existe alguma relação entre a percepção visual e o conhecimento. Todavia, as linhas que aparecem curvas numa ilusão de ótica não endireitam tão longo as "saibamos" retas. Mesmo a experiência direta – a mensuração das distâncias em questão – não elimina habitualmente a ilusão. Em geral, para endireitar as linhas, são necessários outros tipos de mudança, tais como o aumento ou redução da área percebida ou uma mudança nos quadros visuais de referência.
Quando consideramos as resistências à reeducação, pensamos usualmente em termos de obstáculos emocionais. É importante, contudo, não subestimar as dificuldades inerentes à mudança cognitiva. Se lembrarmos que até ampla experiência com fatos físicos não conduz necessariamente à percepção física correta, ficaremos menos surpreendidos com as resistências encontradas quando tentamos modificar estereótipos sociais inadequados.
French e Marrow contam a história da atitude de uma contramestre para com operárias mais antigas. Ela se apega à convicção de que as operárias mais antigas não prestam, embora em seu pavimento tenha operárias antigas que considera muito eficientes. Seus preconceitos se opõem frontalmente a toda a sua experiência pessoal.
Este exemplo da indústria confirma estudos sobre as relações entre negros e brancos, no tocante à influência da escola integrada e às observações acerca do efeito da vida em comum. Tais estudos mostram que experiências favoráveis com os membros do outro grupo, ainda que frequentes, não reduzem necessariamente os preconceitos contra esse grupo.
Só quando se estabelece um vínculo psicológico entre a imagem dos indivíduos específicos e o estereótipo de um determinado grupo; só quando os indivíduos podem ser percebidos como "representantes típicos" desse grupo é que a experiência com indivíduos tem a probabilidade de afetar o estereótipo.
Os estereótipos incorretos (preconceitos) são funcionalmente equivalentes a conceitos errôneos (teorias).
Podemos supor, por exemplo, que as experiências sociais necessárias para mudar estereótipos inadequados tenham de ser equivalentes àquelas raras e específicas experiências físicas que suscitam uma mudança em nossas teorias e conceitos acerca do mundo físico. Não é possível depender da ocorrência acidental de tais experiências.
Como considerar um outro ponto para compreender as dificuldades de mudar a conduta:
Mudanças de sentimentos não acompanham necessariamente mudanças da estrutura cognitiva.
Mesmo que a estrutura cognitiva referente a um grupo seja modificada num indivíduo, seus sentimentos para com esse grupo podem continuar os mesmos. A análise de um levantamento de opinião acerca do problema do negro, que inclua respostas de brancos de diversos níveis educacionais, mostra que, em grande parte, o conhecimento e o sentimento são independentes.
Os sentimentos do indivíduo para com um grupo são determinados menos por seu conhecimento do grupo que pelos sentimentos dominantes na atmosfera social que o cerca. Assim como o alcoólatra sabe que não deve beber – e não quer beber – assim também o soldado branco dos Estados Unidos que observa um negro a passear com uma moça branca na Inglaterra, pode achar que não se deve incomodar – e pode conscientemente condenar-se por seus preconceitos. No entanto, frequentemente, pode sentir-se inerme diante desse preconceito, pois a sua percepção e sua reação emocional permanecem contrárias aquilo que sabe que devam ser.
A reeducação corre com frequência o perigo de atingir apenas o sistema oficial de valores, o nível de expressão verbal e não de conduta; pode meramente provocar aumento da divergência entre o superego (a maneira como me devo sentir) e o ego (a maneira como de fato me sinto), e com isso suscitar no indivíduo uma consciência culposa. Tal discrepância conduz a um estado de grande tensão emocional, mas raramente a uma conduta correta. Pode adiar transgressões, mas tende a torná-las mais violentas quando ocorrem.
Um fator da maior importância no provocar uma mudança de sentimento é o grau em que o indivíduo se envolve ativamente no problema. Sem esse envolvimento do indivíduo, nenhum fato objetivo conseguirá atingir condição de fato para o indivíduo implicado e destarte influenciar-lhe a conduta social.
A natureza dessa interdependência torna-se um pouco mais compreensível se se considerar a relação entre mudança de percepção, aceitação e participação no grupo.
ACEITAÇÃO DE NOVOS VALORES E PARTICIPAÇÃO NO GRUPO
Como a ação é dirigida pela percepção, uma mudança de conduta pressupõe a percepção de novos fatos e valores. Estes devem ser aceitos, não só verbalmente, como uma ideologia oficial, mas como uma ideologia de ação, que compreende o sistema específico, frequentemente inconsciente, de valores que dirige a conduta. Em outras palavras,
Uma mudança da ideologia de ação, uma aceitação real de um conjunto modificado de fatos e valores, uma mudança do mundo social percebido - os três não passam de expressões diferentes do mesmo processo.
Alguns denominam esse processo, de mudança da cultura do indivíduo; outros, de mudança de seu superego.
É importante observar que a reeducação só terá êxito, isto é, só levará a uma mudança permanente se tal mudança de cultura for suficientemente completa. Se a reeducação conseguir unicamente que o indivíduo se torne um marginal, situado entre o sistema antigo de valores e o novo, não terá realizado nada de valor.
Um dos fatores que se revelou de grande importância para o êxito ou malogro do processo reeducativo, foi a maneira de apresentar o novo superego. A solução mais simples parece estar na imposição direta de novo conjunto de valores e crenças. Neste caso, introduz-se um novo deus que tem de lutar contra o antigo, considerado agora um demônio. A tal respeito, podem-se estabelecer dois pontos para ilustrar o dilema com que se defronta a reeducação, com referência à introdução de um novo conjunto de valores.
a) Lealdade para com os antigos valores e hostilidade para com os novos. Um indivíduo obrigado a mudar-se do seu país para outro, com uma cultura diferente, provavelmente enfrentará com hostilidade o novo conjunto de valores. O mesmo ocorre com o indivíduo sujeito à reeducação contra a vontade. Como se sente ameaçado, ele reage com hostilidade. Tal ameaça será sentida ainda mais intensamente se o indivíduo não se estiver expondo voluntariamente à reeducação. Uma comparação entre a migração voluntária e a involuntária, de uma cultura para outra, parece provar esta observação.
Seria de esperar que semelhante hostilidade fosse mais acentuada quanto maior fosse a lealdade do indivíduo para com o antigo sistema de valores. Portanto, é de esperar-se que as pessoas mais sociáveis e, por isso, menos voltadas para o próprio eu, ofereçam resistências mais fortes à reeducação, pela simples razão de que estão mais intimamente ligadas ao antigo sistema.
De qualquer maneira, o processo reeducativo encontrará normalmente hostilidade. A tarefa de romper essa hostilidade torna-se um paradoxo, se se considerar a relação entre a aceitação dos novos valores e a liberdade de escolha.
b) Reeducação e liberdade de aceitação. Dá-se muita ênfase à criação de uma atmosfera de liberdade e espontaneidade, como parte do processo reeducativo. A freqüência livre, a informalidade das reuniões, a liberdade de expressão no tocante a reclamações, a segurança emocional e a evitação de pressões incluem todas tal elemento. A insistência de Carl Rogers na autodecisão do paciente acentua o mesmo aspecto na psicoterapia do indivíduo.
Parece haver um paradoxo implícito nesta insistência na liberdade de aceitação, e provavelmente nenhum outro aspecto da reeducação põe em foco com maior clareza uma dificuldade fundamental do processo. Como a reeducação aspira a mudar o sistema de valores e crenças de um indivíduo ou grupo – mudá-lo a fim de torná-lo adequado à sociedade em geral, ou à realidade – parece ilógico esperar que semelhante mudança possa ser feita por eles próprios. O fato de a mudança precisar de ser imposta de fora ao indivíduo parece constituir uma necessidade tão evidente que, muitas vezes, é considerada natural. Muita gente supõe que a criação de uma atmosfera de informalidade e liberdade de escolha, como parte do processo reeducativo, não pode possivelmente significar outra coisa que não seja o educador ter o cuidado de manipular os indivíduos de modo a fazê-los pensar que são os donos do espetáculo. Para gente assim, essa forma de reeducação não passaria de um engodo e de uma cortina de fumaça para o que consideram o método mais honrado, direto de utilização da força.
Todavia, pode-se assinalar que se a reeducação significa o estabelecimento de um novo superego, segue-se necessariamente que o objetivo procurado não será atingido enquanto o indivíduo não sentir o novo conjunto de valores como algo livremente escolhido. Se ele se submeter apenas por medo do castigo e não pelos ditames de seu livre arbítrio e consciência, o novo conjunto de valores que deve aceitar não assume, nele, a posição de superego, e, portanto, sua reeducação permanece irrealizada.
Disto podemos concluir que a percepção social e a liberdade de escolha estão correlacionadas. Obedecer à consciência é o mesmo que obedecer às exigências intrínsecas percebidas da situação. Só quando o novo conjunto de valores é livremente aceito, só quando corresponde ao superego do indivíduo, é que ocorrem aquelas mudanças de percepção social que, como vimos, constituem condição prévia para uma mudança de conduta e, portanto, para um efeito duradouro da reeducação.
Podemos agora formular o dilema que a reeducação tem de enfrentar: como é possível suscitar a livre aceitação de um novo sistema de valores se a pessoa a ser educada tende, pela natureza das coisas, a hostilizar os novos valores e a ser leal aos antigos?
Os métodos e processos que procuram mudar, ponto por ponto, as convicções, são de pouca utilidade na efetivação da desejada mudança profunda. Verificou-se ser esta uma das experiências mais importantes para os que estão empenhados no campo da reeducação. Argumentos que se desenvolvam logicamente, ponto por ponto, podem encurralar o indivíduo. Mas, via de regra, ele encontrará alguma maneira – se preciso for, uma maneira assaz ilógica – de conservar suas crenças. Não é possível estabelecer qualquer mudança de convicção, a respeito de qualquer questão específica, a não ser de maneira efêmera, enquanto o indivíduo não renunciar à sua hostilidade para com o novo conjunto de valores como um todo, passando pelo menos da hostilidade para o espirito aberto.
Os métodos por etapas são muito importantes em reeducação. Todavia, as etapas têm de ser concebidas como etapas de uma mudança gradual da hostilidade para cordialidade, em relação ao novo sistema como um todo, e não como uma conversão do indivíduo na base de um ponto por vez. Naturalmente , convicções referentes a determinados pontos do sistema total podem desempenhar papel importante no processo de conversão. Entretanto, para o planejamento geral da reeducação, é importante não perder de vista o fato de que os esforços com vista a provocar uma mudança da hostilidade em receptividade e cordialidade com a nova cultura como um todo, devem ter prioridade sobre a conversão referente a qualquer item isolado ou séries de itens do programa reeducativo.
Como então se pode estabelecer a aceitação dos novos valores a não ser por via de uma mudança ponto por ponto da convicção?
A CRIAÇÃO DE UM GRUPO SOLIDÁRIO E A ACEITAÇÃO DE UM NOVO SISTEMA DE VALORES
Atualmente, um dos importantes meios utilizados para efetuar a aceitação em reeducação, tal como foi discutida acima, é estabelecer o que se denomina um "grupo solidário" (in-group), isto é, um grupo cujos membros tenham consciência de a ele pertencer. Nessas circunstâncias,
O indivíduo aceita o novo sistema de valores e crenças quando aceita pertencer a um grupo.
Allport formula este ponto como um princípio geral de ensino quando diz: "É um axioma que não se pode ensinar pessoas que, ao mesmo tempo, sentem estarem sendo agredidas". A distância normal entre professor e aluno, médico e paciente, assistente social e público, pode portanto constituir um obstáculo real à aceitação da conduta postulada. Em outras palavras, a despeito de todas as diferenças de status que possam existir entre eles, o professor e o aluno têm de sentir-se como membros de um grupo nas questões que envolvam seu senso de valores.
As oportunidades de reeducação parecem aumentar sempre que se cria um forte sentimento grupal. O estabelecimento desse sentimento, de que estamos todos no mesmo barco, passamos as mesmas dificuldades e falamos a mesma língua, é ressaltado como uma das principais condições para facilitar a reeducação do alcoólatra e do delinquente.
Quando a reeducação implica o abandono de padrões que sejam contrários aos da sociedade em geral (como é o caso da delinqüência, do preconceito contra minorias, do alcoolismo), o sentimento de participação grupal parece aumentar muito se os membros se sentirem livres para exprimir abertamente os mesmos sentimentos que a reeducação pretende remover. Pode-se considerar isso como outro exemplo das aparentes contradições inerentes ao processo de reeducação: a expressão de preconceitos contra minorias ou a desobediência às regras da ordem parlamentar podem ser contrárias ao objetivo desejado. Todavia, numa fase particular da reeducação, um sentimento de completa liberdade e uma maior identificação com o grupo são frequentemente mais importantes que aprender a não violar regras específicas.
Este princípio de solidariedade grupal permite compreender porque é possível atingir completa aceitação de fatos anteriormente rejeitados, quando os próprios membros do grupo descobrem esses fatos. Então, e amiúde somente então, os fatos se tornam verdadeiramente fatos deles (em oposição aos fatos de outras pessoas). Um indivíduo acreditará nos fatos que ele mesmo descobriu, da mesma forma que acredita em si ou no seu grupo. A importância desse processo de descobrimento de fatos pelo grupo foi recentemente posto em relevo, no caso da reeducação, em vários campos. Pode-se supor que a pesquisa social é traduzida em ação social na medida em que os que realizam tal ação participem do descobrimento de fatos em que ela se baseia.
A reeducação só influencia a conduta quando o novo sistema de valores e crenças domina a percepção do indivíduo. A aceitação do novo sistema liga-se à aceitação de um grupo específico, de um determinado papel, de uma fonte definida de autoridade como novos pontos de referência. Para a reeducação, é fundamental que seja muito íntimo o liame entre a aceitação dos novos fatos ou valores e a aceitação de alguns grupos ou papéis, e que esta seja amiúde uma condição prévia daquela. Isto explica a grande dificuldade de mudar-se gradualmente de crenças e valores. Tal liame constitui importante fator oculto na resistência à reeducação, mas pode também tornar-se um poderoso meio para o êxito dela.

Kurt Lewin e Paul Grabbe
Problemas de Dinâmica de Grupo - Cultrix, SP.

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