02/03/2015





Este pequeno texto de José Saramago tem uma síntese poderosa.


O GRUPO
José Saramago (em O Equipamento do Viajante)

São dez ou doze pessoas assustadas – um grupo. Sentam-se ao redor de um saco cheio de medos: o medo da solidão, o medo do passado, do presente e do futuro. São pessoas trêmulas que entre si decidiram o fingimento de ignorar a presença do saco – e a isso chamam valor. São pessoas mudas de terror que dão risadas, se fazem perguntas e respostas – e a isso chamam comunicação. Mas o saco está ali. O grupo se agita, fermenta, organiza, tem idéias, discute, põe, dispõe e contrapõe, se lança em intermináveis conversas nas quais o mundo é desfeito e refeito – enquanto dentro do saco se escondem os medos à espera da hora.

São dez ou doze avestruzes que escondem cautelosamente a cabeça na areia e movimentam em conjunto seus rabos emplumados. E são inteligentes. Todas vieram de muito longe e sabem muito. Leram todas as bibliotecas, contemplaram todos os quadros de todos os museus, ouviram toda a música existente. Todas têm no bolso da jaqueta ou em sua carteira as trinta e seis maneiras radicais de transformar o universo próximo ou remoto – mas nenhuma delas transformou sua pequena vida pessoal e, em alguns casos, esta tem sido desgraçadamente transmitida.

Quando o grupo se dispersa (coisa inevitável, de vez em quando, até por razões de higiene), continua, de longe, gravitando em torno do saco dos medos.

Ali, o medo da solidão faz convergir novamente os doze planetas no foco central do sistema. Cada um apresenta então sua fraqueza e espera que da doce debilidade nasça uma força.

O grupo tem esta ilusão. Mas na natureza profunda do homem (e em sua responsabilidade) está a que a confrontação de si mesmo com a vida tenha que passar por uma batalha pessoal com os medos que a negam. E de nada serve para a resolução do segundo problema (ser, sendo inteiro) essa embriaguez em comum, esse paraíso artificial que é o grupo. 

O medo da solidão só pode ser vencido depois de um corpo a corpo com o total desnudamento da alma (se me explico bem) ou da abstração a que damos esse nome. E essa vitória não foi alcançada, nem sequer foi iniciado o combate, se se vai buscar no grupo o mítico remédio, a panacéia universal. Isso é aceitar a derrota antes da primeira escaramuça.

Há também a velhice e a morte.

Aqui está o espelho e sua linguagem.
Aqui está o braço que não aperta mais com sua antiga força.
Aqui está o coração que começa a negar-se a subir a encosta.
Aqui está a dor surda que anuncia o irremediável.
Aqui está o tempo e o fim do tempo. Do nosso, do tempo que corresponde a cada um de nós e cuja medida nos ocultam, mas que sonha como o cantar rápido da água que vai subindo no cântaro. Aqui está, pois, a velhice e a morte. Ante este medo, estaremos sós. É nossa batalha particular, aquela em que, no fundo, mais arriscamos, porque é o corpo que está em jogo, o corpo que vai perdendo elegância e vigor, beleza (se a tinha), a máquina esplendorosa feita para a luz e que a luz abandona. Mas são tais as virtudes que o grupo tem, que nele vamos buscar a cegueira útil, ajudados pelo espetáculo consolador da decadência dos outros.

Por fim, há o medo do passado, do presente e do futuro, gerador das angústias cotidianas, sombra e ameaça constantes. O grupo põe em comum três ou quatro esqueletos do passado de cada um, o que permite a instauração de uma benévola aristocracia de sentimentos através, naturalmente, da lisonjeira prática do elogio mútuo.

Mas o armário dos esqueletos com defeitos ósseos, esse, continua bem fechado e a chave guardada por cada um e seu parceiro, se o patrimônio ossamentário é comum aos dois.

Quanto ao presente, o medo está ao alcance da mão, ao alcance do grupo, porque nada daquilo vai durar, porque o grupo segrega de sua contradição o veneno que o destruirá. 

No futuro. Amanhã. Até o próximo grupo. Ou até que cada uma das dez ou doze pessoas descubra que é em si mesma onde está o mal e talvez também o remédio. E que o grupo é, no fim das contas, um poço de águas turvas que vai se diluir e desaparecer como frágil torrão de açúcar na encosta amarga e vertiginosamente lúcida (e por isso capaz de alguma alegria perfeita) que é o melhor dessa grandeza que se chama condição humana.


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