19/03/2015

Artigo para obtenção do título de Especialização em Terapia e Orientação Familiar Sistêmica - UNAMA 2010.


MUDANÇA DE PARCEIROS CONJUGAIS E REORGANIZAÇÃO FAMILIAR.

RESUMO

Este artigo aborda uma situação comum nas relações familiares da pós-modernidade: a transição entre uma separação conjugal, seguida da constituição de uma nova parceria e o processo de reorganização familiar decorrente. O principal objetivo é olhar tal panorama, buscando identificar as principais características de uma reorganização familiar a fim de apontar aos Terapeutas de Família como intervir em um momento humano tão complexo e especialmente, sugerir atenções do terapeuta também para consigo, de maneira que o capacite a desempenhar o papel de aliado, numa reorganização familiar que resulte em crescimento para todos.

ABSTRACT

          The present article presents a common situation regarding family relationships in our post-modern environment: the transition from conjugal break-up to the establishment of a new relationship and the subsequent family structure reorganization process. The main objective is to identify the role Systemic Family Therapy can perform in such complex moment and, especially, to emphazise what the therapist can do to be an ally in a family reorganization process aiming for improvement for all involved.

INTRODUÇÃO

Este artigo é um requisito necessário para a conclusão do Curso de Especialização em Terapia Familiar realizado na Universidade da Amazônia. Durante o decorrer dos módulos o que me chamou mais a atenção foi o aspecto de organização e reorganização familiar, visto que se trata de um grupo, quando da entrada ou saída de um de seus integrantes. Mais especificamente, a mudança de parceiros e a nova convivência com outra família exigem de seus membros uma capacidade de reorganização.
Além disso, um grupo familiar tem seu desenho frequentemente modificado durante seu ciclo vital, na medida em que os membros desse grupo acrescem outras posições às suas de origem, além da chegada ou partida de outros.

A chegada de novos membros, em especial pelo nascimento, é comumente bem-vinda, apesar de também promover incômodos inerentes a todo processo de mudança. A partida, no entanto, é sempre dolorosa, pois vivenciada como perda. Dói especialmente quando a partida se dá em função da separação de uma relação conjugal que oportuniza a construção de novos laços conjugais e com isso de outra família.  Maldonado, (1995, p.105) mostra como se dá essa dor, na diferença dos tempos: “ele é uma pessoa importante para mim e eu fui uma pessoa importante para ele”.
 
Quebra-se nesse momento a imagem da família ideal indissolúvel, fato que costuma gerar nos protagonistas da separação, sentimentos de incompetência e de fracasso quanto as suas expectativas, a dos filhos, de suas famílias de origem e de amigos que compartilham os mesmos valores. A perspectiva do surgimento de outra família descarta, para os mais perspicazes, qualquer esperança de resgate da organização anterior e por esse motivo é vivenciada com luto.

Essa situação tem chegado cada vez mais frequentemente, aos espaços clínicos em busca de terapias, muitas vezes pelo cônjuge que se sente abandonado e procura condições para lidar com sua dor que, naquele momento, é sentida como algo impossível de superar.

A busca pode ser também pelo casal que está em construção. A procura é pela superação de seus medos e inseguranças, em meio a todo o desejo de construir novamente um grupo familiar que resulte da desorganização das experiências anteriores.

Nessas situações cabe ao terapeuta com um olhar sistêmico, nesse momento da demanda, identificar por trás da dor daquele que aparece como porta voz, a necessidade de todos os membros daquele grupo ferido e de sua reorganização para uma nova ordem, que propicie bem estar e aprendizagem para cada um e para a família.

É a ultima demanda que este trabalho se propõe a olhar, visando uma reflexão, auxiliada por escritores, pesquisadores, que já se ocuparam em abordar o tema. A perspectiva é de contribuir com o posicionamento e a ação terapêutica dos profissionais que se propõe a apoiar famílias, ante esse pedido tão comum na pós-modernidade.

Sendo assim, no primeiro item deste artigo será abordada a questão da separação do casal que provoca a desorganização do grupo familiar. No segundo, será explanado o termo “reorganização familiar”. No terceiro, apresentaremos os movimentos do cotidiano que mostram a necessidade da reorganização familiar. Finalmente, no quarto item serão apresentados alguns aspectos da ação terapêutica sistêmica como importante auxílio na reorganização familiar.

  1. A DESORGANIZACÃO/ORGANIZAÇÃO DE UM GRUPO FAMILIAR
“A família sofre influências, acompanha seu tempo, se transforma e nos transforma.”
Gladis Brun (1999, p.13)


Na atualidade os estudiosos de família, apontam que a organização nuclear não é a única vigente. Existem várias configurações de família, tais como: família recasada, famílias homoparentais, famílias monoparentais, etc. Travis (2003, p.37). Do mesmo modo, as relações em nível da conjugalidade  também variam, ou seja, existem maneiras e maneiras, de os casais se relacionarem como parceiros.

Segundo J. Cubert e P. Maroff in Rosset (2002, p.45) classificam alguns tipos de casamentos:

  • Casamento conflitado crônico – a relação marido-mulher é marcada por muita tensão e constante discordância. Brigas e discussões não respeitam a presença dos filhos. Os amigos íntimos e parentes percebem os desentendimentos. Quando um está perto do outro, a atmosfera fica pesada, tensa e nervosa. Discordam sobre qualquer assunto ou coisa. A vida é um tumulto e a emoção atinge o pico da intensidade. Dificilmente vão ser íntimos.

  • Casamento desvitalizado – o tempo passado junto pelos cônjuges perdeu o encanto. Não discutem, não brigam, mas também não vibram. O amor esfriou, a conversa rareou, o sexo ficou escasso, o interesse mútuo arrefeceu. Sobraram os filhos e as preocupações financeiras. “Por não investirem um no outro, a paixao dos primeiros anos fenece, e racionalizam: ‘‘é assim mesmo”, “tudo passa”. Alguns se acomodam, outros reagem e mudam para melhor.

  • Casamento passivo-compatível – a preocupação não é com o cônjuge, mas com as atividades fora de casa ou com as crianças. Não há investimento emocional na interação do casal. É um casamento confortável, sem muito conflito, apesar de cada um ter uma reserva de raiva armazenada, por algum motivo.

Como os autores mostram, há relações conjugais que sobrevivem mesmo tendo se perdido os matizes da conjugalidade, em função de outras motivações. A sexualidade torna-se inexpressiva, vazia e até ausente. A falta de projetos comuns delata o distanciamento morno ou até frio, seco. Ao que Maldonado (1995, p.39) definiu como o “esfriamento crônico”.

Dito de outra forma, as pessoas continuam juntas no mesmo espaço físico por não saber como viver de forma diferente. Por medo de fazer diferente e perder a proteção do que já conhecem. Torna-se “normal” viver como vivem. Sem perspectivas afetivas.

O trabalho, nessas situações muitas vezes passa a se tornar o sentido da vida. Outros projetos e experiências são buscados para atenuar o grande vazio, sem muito resultado. Comumente um dos parceiros torna-se mais sensível a essa situação do que o outro e, portanto mais incomodado. Silencia. Não comunica de forma clara seus sentimentos. O medo do conflito e suas consequências (imaginadas) paralisam e impedem a tomada de iniciativa na busca do dialogo esclarecedor. O outro por sua vez, também não percebe os sinais de perigo. Voltado para outras formas de realização ou para outras questões, nem se dá conta da crise latente. Quem sabe, até para proteger-se da insegurança e do medo da perda? Além do que, pesa neste momento, um fator relevante: como dividir o patrimônio arrecadado com tanto trabalho pessoal?

A separação de um casal pode ocorrer por muitos motivos, e dentre os principais observamos que estão aqueles que dizem respeito aos sentimentos dos parceiros, que mudam ao longo do tempo, em consequência de como lidam com sua experiência relacional. Com seus conflitos não resolvidos e pela inevitável mudança de cada um, não partilhada entre eles.

Também encontramos como causa de separação, o esforço investido por um dos parceiros, durante anos, na luta inglória para mudar o outro, a fim de que respondam expectativas insatisfeitas, construídas quase sempre nas primeiras experiências amorosas com pais, irmãos e outras figuras afetivas importantes. Movimentos inconscientes na contribuição para que o outro não mude em seus comportamentos incômodos e, pelo contrario, os fortaleça como defesa.

De acordo com Zimerman (1997) o ser humano é gregário por natureza e sua existência existe em função de seus inter-relacionamentos. Necessitamos sentir-nos fazendo parte, ter vínculos profundos com outros. É na relação que encontramos o sentido da existência. Deixar de fazer parte de uma parceria íntima nos faz desacreditar de nossa importância. Faz-nos questionar nossa capacidade de ser amado, surge o sentimento de que foi dado o melhor de si e não houve valorização. Pode fazer com que se pense: “investi anos da minha vida nessa relação e nada disso foi levado em conta. Agora sou descartado como um objeto inútil”.

Segundo Brun (1999,p.35) quando não há intervalo entre a ruptura e o recasamento, o novo parceiro é olhado, quase sempre, como o “destruidor de lares”. Com efeito, a separação de um casal é um momento de muita dor e esta dor se agiganta quando o mote é atribuído à chegada de um novo parceiro para compor outro casal, outra família.

O sentimento de desvalor pela percepção de estar sendo preterido em função de outro pode se tornar intensificado. Maldonado (1995, p.96) descreve assim esta situação: “Eu em casa, sozinha, amargando e ele lá feliz com a nova mulher. Morro de raiva por estar sentindo tanta dor, ele não merece”. E o autor ainda sobre a dor, afirma:

A dor profunda da separação é uma dor primordial, arcaica, na medida em que se refere à perda da relação e ao corte ou ao abalo dos aspectos simbióticos. Surge, muitas vezes, a angústia da morte, da desintegração, da solidão, da loucura, da percepção de que o outro não é um pedaço da gente, o fim da ilusão da união, do dois-em um.  Maldonado (1995, p.106)

A dor emocional torna-se colossal quando tudo isso é acompanhado da falta de verdade. A guisa de proteger o outro do choque com a verdade, mas muito mais para proteger sua imagem e proteger-se do julgamento. E o que fazer com seu sentimento de culpa? Muitos optam por negar a existência de uma outra pessoa. Quando há.

Quem está sofrendo a dor da perda, ainda tem dessa forma, suas certezas colocadas em xeque, quando todas as evidências apontam para uma outra realidade continuamente negada pelo (a) parceiro (a). Na verdade, o sentimento de estar sendo manipulado, de ser alvo de uma trama. Enganado por alguém em quem se depositava a maior confiança. Em cumplicidade com um inimigo usurpador, é experimentado como desqualificação e comumente como a maior das traições. “Por pior que seja a dor da verdade nada se compara à dor dessa traição”, afirma Maldonado (1995, p.72).

A dura e dolorosa verdade é impactante, mas importante nesse momento. Dita com compaixão é um tributo a ser pago a quem foi parceiro significativo. Ela não deixa dúvidas e a pessoa ferida poderá começar a investir no ter que aprender a lidar com essa realidade. Cuidar-se para cicatrizar a ferida.

Brun (2001, p.29) descreve este momento da seguinte forma:

(...) existe aquele que diz o não, e aquele que ouve o não. Existe o não falado, com som, voz e sentido, e o não mudo, quando vem acompanhado de movimentos de hostilidade, ou travestido por traições e mentiras. Existe o não que sabe de sua potência dilacerante e procura atenuar a sua força e aquele que atropela sem cuidar ou proteger, deixando atordoado o parceiro que quase sempre está em outro momento interno. Existe o não que avisa e procura dar um tempo ao outro, e o não muitas vezes dito com a irresponsabilidade de uma criança pequena, que ignora qualquer necessidade que não seja a sua própria.

Para proteger-se da dor do desespero, a pessoa surpreendida pela informação de que o outro não quer mais estar casado, pode imaginar que é possível outra chance para a relação e que tudo pode ser restaurado: “Dê-nos outra oportunidade. Dê-me uma chance de reconquistar seu amor. Não destrua nossa família” são argumentos que podem ser utilizados. Como se voltar a sentir fosse consequência de apenas querer investir na relação. Como se tudo dependesse somente da intenção.

Aquele que está pedindo para sair da relação pode sentir estranheza ao perceber manifestações apaixonadas de quem parecia não lhe perceber mais como alguém interessante. É possível que aconteça do parceiro que está sofrendo o sentimento de abandono sentir-se novamente como que apaixonado por aquele que já não lhe mobilizava emocionalmente de forma positiva. A dor da rejeição de tão intensa pode ser confundida com paixão. “O resgate da auto-estima que caiu assustadoramente fica condicionado a sentir-se novamente valorizado pelo parceiro que esta se despedindo” Maldonado  (1995, p.74).

A esperança de que a qualquer momento quem está saindo mude de idéia e volte fica difícil de ser abandonada apesar das evidências. A necessidade de clareza neste momento da comunicação torna-se mais importante ainda.

Junto com a separação dos parceiros é comum acontecer um rompimento das famílias que se vincularam desde que seus filhos casaram. Um desmanche de laços. Um deixar de ocupar posições tais como sogro e sogra, cunhado, nora, genro e outras, que eram resultantes da relação, que está em mudança. Desocupar essas posições resulta na perda de status e de vínculos formais com pessoas da família. “Se os vínculos não forem muito danificados, pelas pessoas envolvidas, esses laços, podem mudar de nome ou até ocupar uma posição ainda sem denominação convencional, mas manter a qualidade” Maldonado (1997, p. 157).

É interessante observar, o quanto precisamos atribuir nomes. Classificar os vínculos em relação aos outros, para nos sentir com um laço legitimado: é parente.
Toda essa gama de experiências trabalhada em um processo terapêutico que vislumbre a rede de relações e a facilitação de diálogo entre os membros da família que está se desorganizando, pode resultar numa outra organização familiar com aprendizagens a partir da superação do momento doloroso.

Por seu lado, o parceiro que se despede está saindo movido por esperanças, pela busca da liberdade, desenhando perspectivas positivas coloridas pela paixão. Se há o medo ante o novo, o desejo de dias melhores é muito mais forte.

Quem tomou a decisão da separação e está feliz pelo novo encontro, precisa pensar com cuidado no grupo que está se repartindo com dor. Fronteiras são como pele. Dói muito para se configurar de outra forma. A ferida aberta sangra e é necessário evitar-se outros choques para que ela cicatrize e se restaure, em seu ritmo.

O desejo de logo poder viver o novo amor pode precipitar atitudes para incluir o novo parceiro na relação com os filhos, se eles existem. Parece prudente, que neste primeiro momento, uma certa discrição é a medida mais adequada. A ostentação da felicidade pode ferir quem está infeliz. É uma questão de investimento no tempo e na delicadeza.


  1. O QUE SÃO FAMÍLIAS REORGANIZADAS ?
Nossa opção pelo termo “famílias reorganizadas” em vez de “famílias reconstruídas” que é mais utilizado; deve-se ao fato de que entendemos que reconstrução pressupõe a destruição ou demolição do anterior. Essa percepção ainda em vigor culturalmente, contribui para que a família resultante desse processo, seja considerada pejorativamente, como que erigida sobre os escombros da destruição de um lar. Uma família considerada “não-família”, por não corresponder ao padrão da família nuclear biológica, concebida pela classe burguesa no século XVIII.

Por “famílias reorganizadas” entendemos formas familiares características dos tempos pós-modernos, que se constituem após o final das primeiras relações conjugais. Não se trata de destruição e reconstrução, mas de “reorganização”.

Uma relação se dissolve e pessoas que a constituíam formam novas parcerias conjugais, o que pode resultar também na reunião dos filhos das relações anteriores de ambos os parceiros. É a família dos teus, dos meus e dos nossos.

A própria história nos mostra que houve e haverá vários modelos de família para cada cultura e cada época. Isto porque família, como todo grupo humano, está em constante mutação. É inerente ao ser humano a capacidade de transformar-se sempre.

A família contemporânea tem como marcante característica o “estar multiforme”. Após mudanças infindas, ela não se delimita apenas por laços de parentesco consanguíneos. Cada pessoa delineia os contornos de sua família com traços afetivos e emocionais. A família é aquela que cada um de nós cria, vive, constrói, desfruta e, às vezes, padece.  Brun (1999, p.12) afirma: “Não existem, padrões nos quais as incontáveis configurações de família se enquadrem. Cada configuração familiar é única”.

Parte do sofrimento atual das famílias que redesenham seus contornos, é que as expectativas de seus membros, e das instituições sociais, quanto à organização familiar, ainda se fundamentam nos modelos de ideal de perfeição. Construídos no período pós-revolução industrial e que ao longo desses séculos, tem sido perseguido por homens e mulheres.

Em nossa cultura espera-se que um casal mantenha-se unido “até que a morte os separe” a qualquer preço; que o pai, seja o chefe da família, forte, protetor, afetuoso; provedor de moral absolutamente ilibada; a mãe seja doce, terna e abnegada, cuidadora de todos com seu amor incondicional e que seus obedientes filhos, sejam amigos, parceiros e cooperativos entre si e com os pais, dispostos a tudo para manter a coesão do grupo familiar, sendo fiéis à cultura que garante a semelhança entre os membros do grupo. Desassemelhar-se desses modelos é frequentemente motivo para tormentosas culpas, sentimento de fracasso e cobranças veementes dos outros. Maldonado (1995, p.42).

Hoje quando pessoas se disponibilizam a buscar relações que propiciem crescimento e satisfação de seu desejo de amar e serem amados, já não se colocam expostos ao sofrimento “até que a morte os separe” e se permitem novas experiências na busca de aprender a difícil arte de conviver intimamente, o que pressupõe relações entre seres o mais autenticamente possíveis, o abandono de padrões impostos e o exercício da responsabilidade, que é a espontaneidade com respeito mútuo.

3. A REORGANIZAÇÃO DE OUTRA FAMILIA

Um dos resultados que o tempo traz na relação é a criação de uma estrutura que serve para organizá-la; define as posições – quem é quem; define os papéis – quem faz o que; define o tempo – quando; define a quantidade – quanto. Esta organização dá segurança aos participantes. É claro que se esta organização se instalar de forma rígida aparecerá muito mais o sofrimento - doença” do que a saúde.

É esperado que uma organização que se aprimore com o tempo, se torne parte de nós, dos nossos hábitos e pode ser muito natural que queiramos mantê-los.

Saindo de uma relação, onde esta estrutura foi construída e indo para uma nova relação que, por sua vez, também tinha e tem uma estrutura em funcionamento, também é comum que aquele que chega queira fazer as coisas da forma como estava habituado e aquele que recebe queira manter o funcionamento da forma como vinha fazendo. Desde que estas formas não sejam muito diferentes, o acordo é mais fácil de ser obtido.  Caso contrário é necessário investir um bom tempo em negociar um novo funcionamento. Isso faz parte da reconstrução familiar.

Comecemos pelo espaço físico. Sair de um local em que se estava habituado, onde se era capaz de orientar-se no escuro e ir para um local completamente desconhecido e, mais grave, ocupando o espaço físico e psicológico que era ocupado por uma outra pessoa não é algo que possamos dizer, como natural. Trata-se, com efeito, de um processo que precisa de tempo e paciência para ser resolvido.

O espaço no armário que era ocupado com as roupas de outra pessoa é mais uma situação que se soma às novas experiências. O lugar de sentar à mesa nas refeições – é aquele, o mesmo que estava acostumado? Talvez seja necessário negociar com os novos membros da família. O espaço na cama, o lugar de dormir, e se for o mesmo que o parceiro deseja? A programação de final de semana, como será? Com certeza não será igual à família anterior, pois antes não havia esta nova família que também gostará de ver todos juntos.
Como será trazer “os filhos” para a “nova casa”. Imaginemos que seja o marido que tenha saído de casa e agora está morando na casa de sua “namorada”. Como será acomodá-los no novo espaço com os filhos de sua “namorada”

E a inclusão na família da nova companheira? Será que todos os membros desta família detestavam o antigo ocupante daquela posição? Este fato contribuirá para que o novo membro seja recebido com expectativas mais favoráveis? Provavelmente não. Alguns gostavam muito e continuarão gostando do (a) “ex”. E isso será um problema? Pode ser ou não, a diferença estará na forma de como estes integrantes do grupo familiar irão se reorganizar, sendo que uma comunicação clara, objetiva, e quem sabe até segura, será sem dúvida, um dos fatores que poderá ajudar nesta reorganização, diminuindo os sofrimentos inerentes a todo processo de mudança. E o ciúme se um dos filhos da “namorada” decider pedir um afago, ou se aproxima mais do que o recomendado pelos outros – seus filhos e irmãos do atrevido (a).

O membro que chega não teve em sua educação uma crença religiosa e a parceira que o recebe é membro de uma família que tem a religião entre seus valores mais significativos. Ir à missa todos os domingos é um habito arraigado e valorizado. Diferente do ficar dormindo ou ir para o parque jogar bola com as crianças. O que fazer?

O tempo necessário para que uma nova organização se estabeleça só poderá ser dimensionado pela disposição dos parceiros (e de todos os envolvidos) em negociar um novo funcionamento com novas posições sendo ocupadas por novas pessoas e com velhos papeis sendo desempenhados por novos ocupantes. Sim, pois uma nova posição passa a existir no cotidiano desta “nova” família: a do padrasto. Há uma posição de pai ainda existente, mas não mais no cotidiano. Pode ser que haja também a nova posição de madrasta no novo cotidiano.

Outras posições também podem se fazer presentes: o filho do meu padrasto, a filha da minha madrasta, meu irmão por parte de pai/mãe. Assim como uma nova organização pode trazer desempenhos diferentes em razão da mudança. Um dos filhos do novo parceiro que ate então mostrava ser um jovem “estudioso, bem educado, sociável” passa a se mostrar agressivo e desatento. Tanto a separação quanto a reorganização provocam movimento na estrutura familiar e cabe ao terapeuta de família um papel de muita importância neste processo, o que veremos no item seguinte.





  1. A AÇÃO TERAPÊUTICA SISTÊMICA NA REORGANIZAÇÃO FAMILIAR

Quando uma família busca a ajuda terapêutica para “passar” pelo processo de reorganização de uma forma mais saudável possível, espera-se que o terapeuta de família a acolha e realmente possa servir de apoio nesta etapa.

Yalom (2006, p.30) em seu livro Os Desafios da Terapia, pergunta:

“(...) de que os pacientes se lembram quando olham para trás, anos depois, sobre sua experiência na terapia? Resposta: não do insight, não das interpretações do terapeuta. É mais freqüente que eles se lembrem das declarações de apoio positivo de seu terapeuta”.

Este apoio não significa cumprir o pressuposto social de ser capaz de salvar todas as famílias, nem ser um salvador e, muito menos um missionário, como afirma Whitaker & Bumberry (1990). Mas o apoio de um ser humano a seres humanos.

Um dos primeiros aspectos que surgem neste processo de ajuda é uma expectativa presente em cada um dos membros familiares: de que o terapeuta valide sua percepção de como as coisas deveriam ser feitas. Fazer isso não é dar o apoio recomendado. Não deve ser esquecido que todos estão querendo recuperar uma “organização” que lhes possibilitava mais conforto, mais certezas, mais reconhecimento, mais segurança.

Co-construir uma nova organização (a reorganização) é a forma como o terapeuta pode realmente contribuir para esta nova família, principalmente quando, segundo Ravazolla, Barilari e Mazieres, in Zimerman & Osório (1997, p.295):
(...) terapeuta e família conseguem, em conjunto, como grupo solidário, ajudarem-se mutuamente a estimular a emergência de aspectos e recursos inesperados e até mesmo desconhecidos da estrutura familiar.

Minuchin & Fishman (1990) utilizam o termo “desafiando a realidade familiar” no sentido de que a família não está satisfeita com a realidade que está sendo apresentada e, na terapia, quer desenvolver novas formas de interação na família.

Ainda Minuchin (1990, p. 199) traz a imagem do terapeuta como ”construtor de universos” se referindo à possibilidade que tem de convidar a familia a examinar todas as suas alternativas, pois:

Uma familia tem não somente uma estrutura, mas, também, um conjunto de esquemas cognitivos que legitimam ou validam a organização familiar. A estrutura e a estrutura de convicção apóiam e justificam-se uma à outra e cada uma delas pode ser a via de acesso para a terapia. De fato, uma intervenção terapêutica irá sempre afetar ambos os níveis. Qualquer mudança na estrutura familiar mudará a concepção do mundo da família e qualquer mudança na concepção do mundo será seguida pela mudança na estrutura familiar (...)

Zinker (1999, p.53) terapeuta gestáltico, traz o conceito de “a boa forma” que se “baseia no fluxo suave de estruturação e desestruturação (...) mobilização e energia, ação contato na fronteira interpessoal, fechamento, nova aprendizagem e retraimento (restabelecimento da separação de fronteiras)

Zinker (2001, p.53) sintetiza o que dever ser observado pelo terapeuta familiar no seu trabalho de apoio, e co-construtor de uma nova organização:

  • Pessimismo para esperança
  • Impotência para competência crescente.
  • Confusão e caos para clareza.
  • Andar em círculos para desenvolver um senso de direção para o futuro.
  • Culpa e projeção mútuas para assumir de uma experiência e a consideração dos dilemas de cada um.

Desta forma, é possível afirmar que o principal exercício do terapeuta será o de “educador” porque precisará preparar os envolvidos na reorganização familiar na arte da negociação de conflitos, através, principalmente, do exercício do diálogo.





CONCLUSÃO

              Vale enfatizar nessa etapa do trabalho: ante um momento de mudança tão desorganizador, rumo à construção de outra ordem, a importância vital de que se abra espaço para o dialogo organizador.

              A troca de informações entre pessoas, sobre seus sentimentos e pensamentos, organiza e mantém vivas as relações, quer seja no nível intra-pessoal, inter-pessoal e intra-grupal.

                Por meio do diálogo, os recursos regeneradores inerentes aquele grupo emergem ante a necessidade premente, como potente lâmpada num caminho escuro. O que está acontecendo a cada um, o que é possível fazer e como é possível fazer para mobilizar o apoio mútuo, vem à tona. O lugar protegido da terapia de família, onde questões delicadas são tratadas com a delicadeza necessária, é o espaço amoroso para descobrir, juntos a capacidade de cooperação e de acolhimento, capaz de nutrir as relações e as pessoas,

É tão rica a experiência da família que busca rever sua organização quanto à de outra que procura se organizar. Tal busca mobiliza um processo doloroso em suas vidas e apesar disso e em função do exercício dialógico, o resultado do investimento, é crescimento para todos.

Quando os membros de uma família conseguem se permitir realizar uma revisão do seu funcionamento, criam a oportunidade de significar e ressignificar novos e velhos hábitos, de construírem fronteiras que facilitarão a circulação da informação entre as pessoas e, também, de garantirem o espaço de identidade validada por todos, o que é tão necessário para cada um.

O cotidiano relacional, por sua característica de produtor de repetições, faz com que hábitos sejam criados, espaços sejam preservados, rotinas sejam cumpridas, rituais realizados, enfim, toda uma serie de eventos construídos que podem se tornar cristalizados a guisa do sentido de segurança. Quando acontece de um membro da família sair desse padrão e entrar em outro movimento, pode haver um choque que necessita ser digerido e gerido, possibilitando a construção de um novo contexto.

Quanto antes os membros de uma família se movimentarem para examinar  aquilo que pode estar produzindo mais doença do que saúde em suas relações, menos processos de sofrimento estarão promovendo  e mais bem estar estarão nutrindo.

Quando uma família busca ajuda profissional para rever seu funcionamento, está também buscando resgatar alegria, prazer, parceria, apoio, solidariedade e  proteção, entre tantas outras necessidades humanas no convívio com os outros. Busca, acima de tudo, realizar-se em sua capacidade essencial de conviver intimamente com os outros e assim desenvolver-se como uma organização humana.

Para que um terapeuta possa contribuir como co-construtor de novos mundos na organização familiar, precisa estar afinado nessa mesma busca pessoal, e com o exercício daquilo que Whitaker & Brumberry (1999, p.122) identificam como a capacidade de ser real, ou seja, “profundidade e intimidade só podem crescer como resultado de trocas reais e conflitos reais”.

A aprendizagem pessoal do terapeuta, resultante de sua auto-observação no processo de conexão com o grupo familiar, retroalimenta o sistema terapêutico. O estar atento para o movimento de seus pensamentos e sentimentos alavanca principalmente o desenvolvimento daquele que está na condição de facilitador de crescimento.

É possível sim, que quem mais aprenda neste processo seja o próprio terapeuta, pois a cada família atendida experimentará,  permitir-se, um desprender-se de preconceitos, de verdades absolutas e acrescentará em suas percepções a possibilidade e a valorização da convivência saudável com as diferenças.



REFERÊNCIAS


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MALDONADO, M. T.  Casamento. Sao Paulo:  Saraiva, 1995.

MINUCHIN, S. & FISHMAN, H. C. Técnicas de terapia familiar. Porto Alegre:  Artmed, 1990.

RAVAZOLLA, M.C., BARILARI, S. & MAZIERES, G. A familia como grupo e o grupo como familia. In: ZIMERMAN, D. & OSORIO, L.C. (org) Como Trabalhamos com Grupos. Porto Alegre: Artes Médicas, 1997.

ROSSET, S.M. (organizadora)  Relações de  Casal – tempo, mudança e práticas terapêuticas. Curitiba: Sol, 2005.

TRAVIS, S. Construções Familiares: um estudo sobre a clínica do recasamento. Tese de Doutorado apresentada na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, 2003. Acessado em 10/03/2010 no endereço wwww.dbd.puc-rio.br/pergamum/tesesabertas/9916776_03_completo.pdf

WHITAKER, C. A. & BUMBERRY, W. M. Dançando com a familia – uma abordagem simbólico-experiencial.  Porto Alegre: Artmed, 1998.

YAHLOM, I.D. Os desafios da terapia – reflexões para pacientes e terapeutas. Rio de Janeiro: Ediouro, 2006.

ZINKLER, J. C.  A busca da elegância em psicoterapia – uma abordagem gestáltica com casais, famílias e sistemas íntimos.  São Paulo: Summus Editorial, 2001.

ZIMERMAN, D & OSORIO, L.C. (organizadores). Como trabalhamos com grupos. Porto Alegre: Artes Médicas, 1997.

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